Porta-estandarte da cultura arménia, Tigran Hamasyan regressou a Portugal para apresentar a sua interpretação musical do conto “Hazaran Bibul” (“The Bird of a Thousand Voices”). Com a sua mistura de jazz, música étnica do Cáucaso e djent, Tigran conseguiu reunir na Aula Magna fãs de fusão, das músicas do mundo e metaleiros.
Como todos os trabalhos de Tigran Hamasyan, “The Bird of a Thousand Voices” é fortemente inspirado na história e na cultura no seu país de berço, a Arménia. Ao longo dos seus 24 andamentos, Tigran conta-nos a história de Areg, o filho mais novo de um rei benevolente que o envia numa jornada para encontrar um rouxinol antropomórfico, a única criatura capaz de trazer redenção ao seu reino. O príncipe depara-se com desertos intermináveis, invernos frios nas montanhas, rios turbulentos, condenações, traições e demónios de quarenta cabeças na sua jornada pelos mundos preto, branco e vermelho.
Foi este o mote da passagem de Tigran pela Aula Magna, em Lisboa. Numa tour que já se estende há vários meses, o pianista arménio tem variado a configuração da sua banda. Ora em formato a solo, quarteto ou quinteto, Tigran faz-se sempre acompanhar de músicos de excelência e a sua passagem pela capital portuguesa não foi exceção. Além do nome sonante do líder do grupo, Tigran trouxe para esta leg da tour um trio composto pelo também “peso pesado” Matt Garstka, baterista aclamado na cena djent pelo seu trabalho com os Animals As Leaders, o baixista Marc Karapetian e o teclista Yessaï Karapetian.
Com um alinhamento centrado exclusivamente no novo trabalho de estúdio, a banda subiu ao palco para atirar-se de imediato à faixa titulo. Numa envolvência de melodias etéreas, Tigran alternou entre o seu piano de cauda e a sua workstation composta por um Moog Subsequent, um Korg microKORG XL e um Casio SA-76. Mas tudo não passou da calma antes da tempestade de “The Curse”, onde a leveza da flauta de Yessaï se converteu numa descarga de breakdowns djenty à la Meshuggah, uma das imagens de marca da música de Tigran.
Mas algo não parecia estar a soar de feição, nomeadamente na forma como o som dos instrumentos acústicos se misturava com o som proveniente do PA. Devido à configuração intimista da Aula Magna, as batidas de Garstka soavam como petardos que se sobrepunham exponencialmente ao baixo de Karapetian e aos sintetizadores de Yessaï, algo constante nas secções mais pesadas.
Longe de ser algo que tenha prejudicado o bom funcionamento da performance, o quarteto partiu de seguida para “The Quest Begins”, numa excelente demonstração das qualificações de Tigran enquanto pianista de jazz virtuoso. Na sua primeira intervenção ao microfone, Hamasyan foi bastante sucinto. «Já passou algum tempo Lisboa. Obrigado por estarem aqui.», foram as palavras ditas por Tigran antes de apresentar a banda que o acompanha e de seguir com “Prophecy of a Sacrifice”, tema pautado pelas suas vocalizações em consonância com a melodia do piano.
Até então, o concerto estava a correr como planeado e com um bom encadeamento. Porém, um problema técnico nos in-ears de Yeassï fez com que “Red, White And Black Worlds” fosse interrompida logo no início. Ao aperceber-se de que a pausa iria prologar-se mais do que o esperado, Tigran decidiu tornar o momento menos monótono ao contextualizar a obra que estávamos a ouvir. Além de apresentar a fonte de inspiração, ainda mencionou a criação de um videojogo inspirado no conceito do álbum e a apresentação da gravação audiovisual de duas experiências distintas da sua performance ao vivo, a “Versão Concerto” — uma apresentação musical ao vivo de Tigran Hamasyan e a sua banda, e a “Performance Encenada XL” — uma adaptação teatral estendida dirigida por Ruben Van Leer.
Mas, de repente, surgiu o ok e foi mesmo “Red, White And Black Worlds” que se seguiu, malha que demonstra a riqueza da polirritmia e das texturas da sua música.
A resolução do problema prolongava-se e Tigran já estava disposto a contar anedotas ou a partir para uma peça a solo no piano. Mas, de repente, surgiu o ok e foi mesmo “Red, White And Black Worlds” que se seguiu, malha que demonstra a riqueza da polirritmia e das texturas da sua música. Já variações dos temas de “The Curse” e de “Areg And Manushak (He Saw Her Reflection In The Water)” antecederam “Betrayed By Brothers”.
Com títulos que podiam constar em qualquer álbum de metal, “Forty Days In Realm Of Bottomless Eyes – He Brings Light Into The Soil Of Evil” e “Flaming Horse And The Thunderbolt Sword – From The Depths Of The Sea” trouxeram uma dicotomia entre agressividade e graciosidade. A primeira com secções sucessivas de breakdowns a invocar um headbang constante por parte da plateia. Já a segunda trouxe delicadeza e imagens sonoras de uma paisagem serena, algo pautado pelo solo vertiginoso de Yeassï, que ao longo do concerto dedilhou um teclado MIDI Novation Launchkey MK4 e um módulo de sintetizador Prophet 08 da Dave Smith Instruments.
Num momento de brincadeira com o público, Tigran puxou do motivo principal de “The Kingdom” para numa versão despida incentivar o público a entoá-la. Tudo começou muito afinado, até Tigran fugir para as dissonâncias.
“Only the One Who Brought the Bird Can Make It Sing” trouxe uma melodia hipnotizante recorrente, possivelmente uma representação concreta do canto do rouxinol que Areg encontra na sua jornada. Num momento de brincadeira com o público, Tigran puxou do motivo principal de “The Kingdom” para numa versão despida incentivar o público a entoá-la. Tudo começou muito afinado, até Tigran fugir para as dissonâncias. A ponte depois foi feita com a versão do tema que encontramos no álbum, numa demonstração da velocidade das pancadas alternadas de Gartska na tarola e nos pratos.
Após uma primeira despedida do palco perante uma Aula Magna de pé rendida à mestria dos quatro músicos, Tigran e os seus companheiros regressaram para “The Well of Death and Resurrection”. Ainda com uma variação mais rebuscada de “The Kingdom”, o músico viajou uma última vez de forma harmoniosa por todos os estilos musicais que o definem. Da cacofonia jazzística às melodias arménias, passando pela eletrónica e o djent, Tigran é a prova provada de que não precisamos de nos fechar em caixinhas e de obedecer a rótulos musicais. Quando o talento e a criatividade estão lá, nada mais importa, e o povo arménio só tem que orgulhar-se de ter um músico deste calibre a contribuir para a sua herança cultural.