Entrevista: A Banda Sonora da Nova Vida De Cabrita
Este é João Cabrita, aka Cabrita, o saxofonista multi-task que acaba de se aventurar a solo com um belíssimo disco recheado de convidados do primeiro plano da música nacional.
À entrada, uma paisagem sonora de um filme de suspense com saxofones ‘morphinianos’ em crescendo bluesy estendidos por cima de um beat maquinal despido e de um synth bass escuro e robusto que envolvem tudo num primeiro grande momento que antecede toda a viagem que se segue ao longo de 10 temas.
“Cabrita” é um verdadeiro banquete com sabores gourmet. Podia ser a banda sonora de muitos filmes, do James Bond ao experimentalismo à la Sex Mob, dos grooves que acenam sem qualquer pudor a Herbie Hancock de “Head Hunters” às autênticas viagens sonoras que nos levam à Ásia, África, ao deserto mais árido ou à mais verdejante selva sonora.
Do lamento instrumental negro e profundo à luz e cor festivas, não esquecendo o delicioso pormenor da percepção dos convidados apenas pela escuta do (seu) som – essa identidade que cose o disco como um todo -, esta é uma estreia a solo absolutamente em grande do saxofonista que ao longo dos últimos 30 anos passou por formações que dispensam apresentações.
Dos Sitiados aos Kussondulola, de Legendary Tigerman a Dead Combo, Sérgio Godinho ou Orelha Negra – estes são (apenas) alguns dos nomes com quem já partilhou salas de ensaios, estúdios e palcos. Trinta anos de milhares de concertos, de dezenas e dezenas de discos gravados.
Trinta anos depois, chegou a hora de Cabrita e da sua estreia a solo, na qual explora fronteiras entre géneros e convoca alguns dos muitos parceiros de outras vidas para colaborarem nos temas que escreveu para esta sua nova vida.
“Cabrita” foi lançado pela Omnichord Records em formato cd e nas plataformas digitais no início de Outubro, e agora, está prestes a chegar em formato vinil duplo gatefold numa edição limitada com um disco extra, preenchido com temas inéditos, totalmente gravados por João Cabrita em casa, nas suas “Quarantine Sessions”. Altura ideal para conversarmos com o saxofonista que acaba de se assumir como personagem principal da banda sonora do filme da sua vida.
João Cabrita. Cabrita. A solo. Mas não tanto. Porquê agora, ou, porquê só agora?
Começou sem querer no Inverno de 2018, estava sem muitos concertos e pus-me a compor para exercitar a criatividade e encher a gaveta das ideias, que é uma coisa que tenho sempre à mão para quando é preciso ou para quando me falta a inspiração. Fui compondo e à tantas dei por mim com 10 temas, já tinha feito um afro beat, um reggae, o “Whatever Blues” e mais umas tantas e comecei a perceber que já estava a repetir algumas soluções. Resolvi dar um toque ao Tó Trips e perguntei-lhe se por acaso não tinha uma ideia inacabada, metida na gaveta, porque sei que ele também faz isso e o Tó mandou-me o “Dancing With Bullets”. Aí, a coisa abriu e continuei a trabalhar até chegar aos 21 temas. Foram dois meses intensos. Foi muito tempo sempre a compor. E como já me tinha metido com o Tó Trips, depois veio o Sam The Kid, a quem pedi um beat para eu pôr as minhas “palavras” em cima, surgiu também o Ivo Costa, que me mandou um beat que lhe tinha sobrado de uma sessão do Agir… e aí já me estava a comprometer com outras pessoas para tornar isto um objecto mais palpável e não apenas um exercício para ficar na gaveta. Entretanto, em 2019, fazia 30 anos de carreira e isto, tudo junto, começou a ganhar formas de um disco e já fazia sentido enquanto objecto. Depois, houve uma coisa muito importante que foi a entrada em campo do Hugo Ferreira, da Omnichord Records, que se entusiasmou imenso com a coisa e me deu um apoio gigantesco, fazendo-me dar o passo final para a concretização do disco.
Depois de tantos anos nos discos de outros, um disco a solo era algo que já tinhas vontade de fazer?
Na verdade, não. Desde há muito tempo que tenho a sorte de ter liberdade criativa nos projectos dos meus amigos e então, tirando um ou outro caso em que fui apenas intérprete e tive de ‘tirar’ o que estava gravado nos discos, sou sempre eu a escrever os arranjos de sopros e faço partes, componho, portanto, tinha esse esqueleto bem tirado do armário, não era uma coisa à espera de acontecer. Por outro lado, também estava a compor a 100% nos Cais Sodré Funk Connection, portanto, sentia-me mais ou menos realizado. Isto foi mesmo circunstancial.
Uma circunstância que implica algum protagonismo…
Pois, agora sou o vocalista do conjunto! [risos] Para dizer a verdade, essa parte deixa-me um bocadinho nervoso, muito mais do que os muitos concertos que faço ao longo do ano. Mas por isso é que arranjei um coro muito fixe: três saxofones, em que eu faço de saxofone vocalista e a fazer de coros os meus amigos Gonçalo Prazeres, que toca em Club Makumba e Dead Combo, o João Capinha, que toca com o Bruno Pernadas e o André Murraças, que tem uma série de formações de jazz muito fixes. E tenho também comigo o João Rato nas teclas e guitarra e o Filipe Rocha, dos Sean Riley & The Slowriders, na bateria.
O Gui tem muito mais talento do que o crédito que dá a si próprio
Além de todos esses nomes, chamaste muitos mais para gravar neste disco. Como foi esse processo?
Eu fiz o grosso dos temas sozinho, tirando os três casos de que falei. O resto do pessoal que entra no disco foi mesmo uma questão de casting, ou seja, quando estava a acabar os temas, ou a sentir que estavam num ponto em que já não podia fazer mais por eles, achei que era fixe ter mais malta a colaborar. Abri a cancela e convidei malta para dar input criativo às coisas. Por exemplo, na primeira faixa, no “Whatever Blues“, senti que estava a faltar qualquer coisa que cortasse um bocado com a norma e lembrei-me do Gui, que é meu compadre e o único saxofonista que eu gostava muito de ter ali. O Gui tem muito mais talento do que o crédito que dá a si próprio e nunca se aventura muito fora do seu universo e então achei que era um bom desafio para ele. Depois, fui por aí fora. Para o “Desperado“, que no início tinha um feeling meio Sitiados do início, da altura dos concertos no Rock Rendez-Vous, chamei a Sandra [Baptista] e o seu acordeão, o João Marques e o Jorge Ribeiro para os sopros, que faziam parte da minha secção de sopros quando toquei nos Sitiados. Depois, houve uma fase em que já tinha uns 15 temas e achei que, já que tinha convidado tantos amigos para tocar no disco, era um desperdício não ter cantores e então fiz uma letra para o “Never Gonna Give It Up“ e fui chamando malta para vir cá a casa almoçar e depois cantar comigo [David Pessoa, Tamin, Silk, Susana Félix e Selma Uamusse].
É o “featuring Everybody“.
[risos] Teve de ser, senão não cabia toda a gente no título da canção. Nesse tema, houve os amigos que quiseram entrar e os que não gostaram do resultado e pediram para sair. Esse tema foi muito fixe de fazer, foi uma porta circungiratória de malta. Até o meu filho tocou teclas! Foi mesmo o tema de festa para encerrar o disco.
A maior parte das participações foram gravadas em modo teletrabalho?
Depende. Por exemplo, no “Afronaut’s Lament“, o Hélio Morais usou o estúdio dele, a Haus, mandou-me uma maquete e eu depois fui lá ter com ele para trabalhar. O tema tinha um beat tipo kuduro, semba, muito linear, muito afro clássico e ele fez uma abordagem completamente diferente, tal como eu esperava, embora completamente inesperada! Portanto, no caso dessa canção, fui à Haus operar enquanto ele gravava. O João Gomes mandou-me as teclas já feitas desde casa. Temos um entendimento muito fixe, adoro trabalhar com ele. É engraçado que nunca falamos muito da música, falamos da vida e das coisas, contamos anedotas, mas de música… nada. Entendemo-nos muito facilmente e é muito fácil acontecer magia das mãos do João. Como tinha o David Pessoa a gravar uma voz e uma guitarra no “Never Gonna Give It Up“, pedi-lhe para me gravar uma guitarra no “Afronauts Lament“ para a coisa ficar um bocadinho mais ‘grounded’, porque de repente já estava a ir para o espaço com o Hélio e o João. A Selma também veio cá a casa almoçar e gravou. Entretanto o tema com o Sam The Kid estava a ficar com uma onda meio religiosa, funky dos seventies e achei por bem meter um coro gospel na secção final, não sei muito bem porquê, mas apeteceu-me e achei que fazia sentido. Esse coro gigante que lá está sou eu e a Selma multiplicados por 15, ‘praí. Portanto, as coisas foram acontecendo assim, naturalmente. Todos os convidados entraram de forma natural, encaixando nos temas, uns gravando em casa e outros vindo cá gravar.
Juntaste tudo no Pro Tools e pós-produziste muito ou tentaste manter o espírito das sessões?
Não, por acaso foi no Cubase, eu não trabalho muito com Pro Tools, só quando tem de ser [risos]. Na verdade, produzi, porque eu é que dei o mote para as pessoas entrarem, apesar das contribuições serem umas mais inesperadas do que outras, houve sempre vários graus de execução. Por exemplo, o Ivo Costa entrou com uma bateria totalmente feita por ele, mas nos outros temas que lhe pedi para gravar já foi com os beats definidos por mim e basicamente ele foi mais executante do que autor e criativo. Houve vários graus de input das várias pessoas em vários sítios. No final, tive um controlo bastante grande sobre as coisas. Acabei por editar algumas coisas que se calhar estavam um bocadinho excessivas. O mote foi sempre a música, o mote foi: ‘quem é que vai tornar esta canção melhor e como é que o vai fazer?’ A música ditou sempre a regra base para tudo, desde o casting até ao que ficou no produto final ou ao que teve de sair para não ficar tudo encaracolado. Porque às vezes acontece. Eu próprio sou um desses músicos que produzem pistas a mais para depois deitar fora. É uma coisa normal. Prefiro ter muito para escolher.
A única coisa consciente neste alinhamento é que à medida que a música vai ficando mais negra de raízes, vai ficando mais luminosa de ambiente
Que truques utilizaste?
Não muitos! Principalmente, houve coisas chatas, houve contribuições que não chegaram a tempo, muitos dos meus amigos mais criativos são também os mais lentos a trabalhar e atrapalham-se com a sua vida e agenda e então ficaram de fora alguns contributos que acho que iam ser incríveis, mas depois tinha de fechar o disco e não pude esperar mais. Como foi o caso do meu grande ‘mano’ Francisco Rebelo, que acabou por aparecer só como engenheiro de som, no seu estúdio, a gravar o Rui Alves na bateria no “Dancing With Bullets“, e não enquanto baixista.
Há, neste disco, naturalmente, jazz e funk, ou não fosse o disco de um saxofonista… Mas há muito mais paisagens de sítios distintos. Como as definiste? Se é que definiste.
Curiosamente, isso foi o mais difícil de tudo. Quando comecei, não tive objectivo nenhum, fui fazendo, fiz um afro beat, depois um reggae, depois o “Whatever Blues“. A seguir fiz uma coisa mais roqueira, o “Caravan“, que até entrar o Paulo Furtado era uma espécie de “Elephant Walk“, do Mancini, mas um bocadinho mais pesadote por causa do beat, gravado depois pelo Serginho [Sérgio Nascimento]. Houve um desmultiplicar de direcções muito grande e depois o que deu mais unidade ao disco foi que, à medida que os 21 temas avançavam, começaram a cair alguns e, quando tinha uns 15 ou 16, comecei a achar que estava tudo muito maçudo e disperso demais. Então, fui deitando fora algumas canções e experimentando alinhamentos diferentes e este foi o que ganhou, porque apesar de serem paisagens tão diferentes entre si, há uma linha coerente que se conduz ao longo do disco. É uma espécie de viagem. A única coisa consciente neste alinhamento é que à medida que a música vai ficando mais negra de raízes, vai ficando mais luminosa de ambiente. Sai do rock e vai um bocadinho mais para o funk e soul, esse é o único crossfade ao longo do alinhamento, vai ficando mais festivo e mais luminoso à medida que vais avançando. Mas é mais negro em termos de raça musical.
O cinema parece muito presente neste disco. Que filmes andaste a ver e ouvir?
Não faço ideia [risos]. Isto funciona de forma diferente para várias pessoas. A mim, o que inspirou mais a fazer este disco foi, por exemplo, ouvir na carrinha do Tigerman vários clássicos de rock and roll, instrumentais de saxofone, umas coisas assim um bocadinho toscas, mas que quando ouvia aquilo, pensava: ‘estes gajos conseguiam fazer aquilo que eu nunca pensei que que fosse possível fazer só com um saxofone’. Era daquelas coisas que eu faria com uma secção inteira de sopros e muitas das soluções antigas e dos grooves antigos entraram-me muito na cabeça na altura em que comecei a fazer este disco e isso é que me inspirou, de facto. Isso e coisas mais esquisitas de agora, tipo The Comet Is Coming ou Bad Bad Not Good, coisas mais recentes, interessantes, cruzamentos de hip-hop com jazz e funk e outras coisas. Portanto, não há muita imagética na minha cabeça quando componho, não me influencio muito, mas reconheço que há algum tipo de identidade nos ambientes que depois aparecem. É, de facto, uma banda sonora do filme da minha vida ou coisa que o valha.
Não me fecho oito horas por dia a estudar se não tiver concertos, portanto, o que fiz foi inventar um dispositivo para me manter activo
Vais editar em vinil. Os formatos físicos ainda são coisas a que dês importância na música ou é só porque a capa fica mesmo fixe em vinil?
As capas ficam mesmo muito fixes em vinil [risos]. Felizmente, sou um sortudo, porque todos os últimos discos que gravei têm saído em vinil, desde as bandas em que trato das coisas, como os Cacique’97 e os Cais Sodré Funk Connection, até aos outros projectos em que participei mais valentemente, tipo “Odeon Hotel“ dos Dead Combo e o “Misfit“ do Tigerman. Não é assim tão impossível de fazer hoje em dia e é um objecto muito mais bonito. Não há hipótese! Nesta edição de vinil vou arriscar ainda mais, vou fazer um duplo álbum, metendo, juntamente com “Cabrita“, as “Quarantine Sessions“. Vai ser uma espécie de disco bónus que vai ser o lado C e D do disco.
Fala-me dessas “Quarantine Sessions“, que saem com o vinil em Novembro.
Aí sou praticamente só eu. Há dois temas que repesquei de projectos que fiz durante esse período também, como um fado e uma letra que o Silk, o cantor dos Funk Connection, escreveu durante o confinamento, que espelhava bastante bem a situação que estávamos a viver, engaiolados numa espécie de jaula de medo e musiquei esse poema dele, com ele a dizer. No geral, as “Quarantine Sessions“ são uma espécie de continuação do disco. Eu não sou aquele músico que estuda o saxofone como académico, ou seja, não me fecho oito horas por dia a estudar se não tiver concertos, portanto, o que fiz foi inventar um dispositivo para me manter activo numa altura sem concertos. Fui compondo um tema por semana, só saxofones e sons de percussão feitos com o corpo, palmas, estalidos dos dedos, sons de boca, o que quer que fosse. O saxofone e o meu corpo são os únicos instrumentos nessas canções. Compilámos as melhores e vai sair como bónus.
Quase que podes agradecer à pandemia o tempo para compor…
Sim. É verdade. Foi a circunstância. Não existe aquela coisa de uma pessoa ser muito ou pouco sortuda, o que existe é saber aproveitar as oportunidades. E ficar fechado em casa a amargurar com uma situação que te ultrapassa… a minha solução foi essa, inventar trabalho, novas coisas. E isto aconteceu porque eu já estava no processo de misturas do disco dos Funk Connection, senão, provavelmente teria composto um novo álbum dos Funk Connection. Foi mais numa perspectiva de não baixar os braços e não desistir. Há-de haver uma solução, é nisso que acredito, tal como neste momento em que estamos, com as ameaças de fechar outra vez e não podemos acreditar que será assim.
A promoção que tens feito ao disco é uma interessante partilha do teu baú de memórias.
É fruto de um brainstorming com a malta da editora. Como o pretexto começou por ser os meus 30 anos de carreira, achámos por bem que a comunicação fosse baseada nisso e faz algum sentido. [Um post regular nas redes sociais com uma foto de uma das bandas por que passou Cabrita e um texto a acompanhar] é uma narrativa como outra qualquer, mas é a minha narrativa e é o processo que me trouxe até este ponto. Provavelmente, o último post vai ser uma foto de um concerto de Cabrita no Maria de Matos ou algo assim.
Achas que vai haver estrada para este disco?
Para já, não tenho nada que possa anunciar, porque ainda está tudo por confirmar e neste momento do campeonato há mais desconfirmações do que o contrário! Como nos aproximamos do aumento de casos de infecção, não haverá grande responsabilidade política para se fazer grandes concertos mas, de qualquer modo, já fizemos um, mesmo antes de começar o confinamento, no festival Clap Your Hands Say Fest, em Leiria, no dia 6 de Março. Depois fizemos um em Agosto no teatro Maria de Matos, que foi muito, muito fixe. Foi aí que o espectáculo ganhou forma. No primeiro concerto, estávamos a tentar reproduzir o disco ao vivo e no segundo crescemos como banda e já estávamos a fazer a coisa acima do disco, aquilo que normalmente sentes quando estás a tocar, não estás apenas a fazer o disco, já estás a dar de ti, a meter outra energia e a criar outras soluções e situações. Agora vamos rezar para que venha uma vacina depressa e comecemos a tocar em todo o lado o mais depressa possível. Estamos mortinhos por levar isto para a estrada!