Game of Thrones: software português utilizado no som da última temporada
O software de áudio 3D “Sound Particles” é a nova arma secreta de Hollywood. Entrevistámos o CEO Nuno Fonseca e desmistificamos o programa que já foi utilizado em filmes como “Mother”, “Cars 3”, “Steve Jobs”, “Aquaman” ou “Independence Day: Resurgence”.
O Sound Particles está a ser frequentemente utilizado na indústria de entretenimento Americana, mas a sua origem e localização é em Leiria, Portugal. O software português de áudio 3D foi recentemente aplicado na última temporada de “Game of Thrones” durante a criação de batalhas, mas não foi a primeira vez que marcou presença numa grande produção ao nível de Hollywood. “Alita”, “Aquaman”, “Cars 3”, “Mother”, “Steve Jobs” ou “Independence Day: Resurgence” são algumas das produções que usufruíram da tecnologia portuguesa para a criação sonora 3D.
A Sound Particles LDA desenvolve software áudio que utiliza técnicas de computação gráfica aplicadas ao som, mas para uma melhor compreensão do seu funcionamento conversámos com o CEO Nuno Fonseca. Também aprofundámos a relação com Game of Thrones, as maiores dificuldades de produção ou as mais recentes prioridades. Lê a entrevista abaixo.
É possível explicar o funcionamento do software de forma simples?
Aquilo que nós fazemos com o Sound Particles é utilizar conceitos da computação gráfica, mas em vez de utilizar os conceitos da tecnologia para imagem, fazemos isso no som. Um exemplo das coisas que conseguimos fazer: imaginem que alguém está a criar o som de uma batalha, se quiserem criar o som dessa batalha para um filme, ou uma série, o que é que se precisa de fazer? Importar uma explosão aqui, uma explosão acolá, um tiro aqui, outro tiro acolá e, provavelmente, passam dois dias a trabalhar para chegar ao fim e ter 50 sons a tocar ao mesmo tempo. Com o Sound Particles, utilizando estas técnicas de computação gráfica, consigo em poucos minutos chegar ao programa e dizer «quero dez mil sons espalhados à minha volta» e vou à minha biblioteca de sons buscar, por exemplo, cem sons de guerra e em poucos minutos tenho um som de batalha muito mais realista com milhares de sons em vez de ter 50 sons e isto é uma das funcionalidades do Sound Particles.
Podemos afirmar que utilizar o “Sound Particles” economiza imenso tempo aos responsáveis pelo som?
Exactamente. Quanto mais épica for a produção, maiores são as vantagens do Sound Particles. Com um filme de super-heróis, ou de ficção científica, com laseres por todo o lado e batalhas com inúmeras coisas a acontecer, uma ferramenta como o Sound Particles ainda se torna mais interessante porque poupa imenso trabalho e consegue produzir sons ainda mais interessantes.
Portanto, a sua utilização não está restrita a «cenas épicas» e/ou «batalhas de grande escala»?
Claro que não. Pode ser utilizado para cenas mais pequenas. Posso utilizar o software para criar uma cena num restaurante, onde quero o som do talher do vizinho do lado, o som de pessoas a falarem atrás de mim, ou então uma cena que se passa numa cidade com carros a passar e pessoas a falar. Obviamente que o Sound Particles tem outras utilizações possíveis para além das “cenas épicas” e afins, mas é nesse campo que o software brilha porque a mais-valia dele torna-se mais visível.
Sobre a utilização do software na última temporada de Game of Thrones. Como é que conseguiu furar em Hollywood? Como é que aconteceu o contacto com as grandes produções?Aconteceu de uma forma muito fácil e posso contar um pouco a história do Sound Particles. Há dez ou doze anos, apercebi-me que os efeitos visuais mais interessantes que via no cinema utilizavam sistemas de partículas – uma técnica de computação gráfica onde se criam milhares de pontos – e achei que podia ser interessante aplicá-la ao som e criar milhares de pequenos sons que todos juntos criavam um som muito mais interessante. Foi só uma ideia. Até que em 2012 acabei o doutoramento e como ainda ninguém estava a utilizar sistemas de partículas na área do som, comecei a criar o meu próprio simulador. Em 2014 fui até Los Angeles para uma conferência e algumas semanas antes de ir à conferência enviei meia dúzia de e-mails para pessoas que trabalham nos estúdios a dizer «estou a trabalhar nesta área, acho que o meu projecto pode ser particularmente interessante para grandes produções e daqui a umas semanas vou estar na vizinhança». A primeira resposta veio do pessoal da Skywalker Sound, o estúdio de George Lucas, que eventualmente é capaz de ser o maior estúdio de som para cinema em todo o mundo. Acabei por ir até ao Skywalker Ranch fazer uma palestra e num espaço de seis meses acabei por dar palestras em todos os grandes estúdios. Estive na Universal, na Warner Brothers, na Fox, na Paramount, entre outros. E foi aí que as coisas começaram a acontecer, além disso, já estivemos em vários eventos. Recentemente estivemos em Los Angeles.
E no caso de Game of Thrones?
No caso de Game of Thrones, a Paula Fairfield (Designer de Som da Série) já tinha utilizado o Sound Particles noutros trabalhos que produziu, por exemplo, no filme “Mother” e na série de televisão “The Mist”. Quando chegou a altura de Game of Thrones, especialmente esta temporada com as batalhas épicas, a Paula já sabia o que é que queria utilizar para criar tudo isso.
A série tem um nível de produção e qualidade técnica, quer na imagem, quer no som, fora de série. Fiquei super satisfeito com a qualidade do som.
O Sound Particles foi unicamente utilizado nas batalhas?
Não sei exactamente se foi utilizado neste último episódio ou não (Temporada 8, episódio 5), em princípio sim. Falei com a Paula e com mais outras pessoas da equipa quando estivemos em Los Angeles para os prémios da Cinema Audio Society e na altura disseram-me «nós utilizámos o software na nova temporada, mas não te podemos contar os pormenores». A equipa não pode revelar nada do ponto de vista dos episódios, mas o que a Paula me disse foi «quando vires o episódio vais perceber imediatamente quando é que usamos o Sound Particles».
A última temporada de Game of Thrones série está a ser alvo de críticas por alguns erros cénicos. Por exemplo, o copo de Starbucks no episódio quatro ou a mão cortada de Jamie que renasceu no episódio cinco. Em termos de som, existiu algum erro de som ou alguma situação sonora que poderia ter sido produzida de melhor forma?
O tipo de erros como esse do copo são coisas que acontecem até em outras produções. O que eu posso dizer é que a nível de produção o “Game of Thrones” está muito à frente de tudo o resto o que é produção para televisão. Normalmente este tipo de produções só é feita em cinema. A série tem um nível de produção e qualidade técnica, quer na imagem, quer no som, fora de série. Fiquei super satisfeito com a qualidade do som.
Em termos de produção do Sound Particles, qual foi a funcionalidade mais difícil de produzir?Existe um conjunto de dificuldades ao produzir um software complexo como o Sound Particles. Temos de utilizar conceitos de computação gráfica, conceitos de física, de matemática, de som e até de vídeo. Obviamente que tudo isso é complicado, mas diria que provavelmente a parte mais complicada foi tornar o Sound Particles capaz de fazer o render em tempo-real. Ou seja, à medida que estou a alterar os parâmetros, estou a ouvir imediatamente o que vai acontecer. Porque aí, no ponto de vista de capacidade de processamento que o programa necessita para fazer o render e ainda por cima em tempo-real, acaba por ser uma tarefa muito pesada. Demorámos vários meses para conseguir colocar essa funcionalidade a funcionar.
Continuam a disponibilizar actualizações com frequência?
Sim, sim. Quase todos os meses lançamos actualizações e lançámos o Sound Particles 2.0 em Fevereiro. Este mês vamos lançar a versão 2.1 com novas funcionalidades.
Quais é que são as prioridades actuais na vossa lista de tarefas?
Temos uma lista de funcionalidades que queremos acrescentar ao software. Neste momento, aquilo que estamos a dar prioridade são as funcionalidades de edição áudio no software. Queremos permitir algumas coisas dentro do software sem a necessidade de utilizar editores externos.
Além do cinema e séries, também estão no panorama da Realidade Virtual. O desafio é o mesmo ou têm que se adaptar para esse mercado?
A parte da realidade virtual tem algumas características específicas. Por exemplo, a Ambisonics tem um papel fundamental e a parte Binaural também tem um papel fundamental que normalmente nas outras áreas de cinema, televisão e videojogos não é tão importante. Existiu algum trabalho de casa que teve de ser feito para colocar o Sound Particles a suportar todos esses formatos, mas no core, as mudanças não foram tão significativas quanto isso, antes pelo contrário. Existiram funcionalidades de Realidade Virtual que nós colocámos no mercado primeiro que qualquer outro fabricante. Como estávamos a trabalhar o som de forma tridimensional, conseguimos rapidamente lançar funcionalidades cá para fora. Fomos, por exemplo, o primeiro software que permitia importar um vídeo 360º e colocar e animar o som em cima da imagem.
Binaural é som 3D?
O som binaural é som 3D, mas reproduzido com auscultadores. Ou seja, através de auscultadores conseguir criar a sensação de que o som vem da frente, de cima, de lado, atrás, etc. E o conceito base do som binaural é a reprodução de som 3D, mas com auscultadores em vez de colunas.
O software já foi utilizado em produções portuguesas?
Não sei exactamente, nós temos algumas licenças vendidas em Portugal embora não representem 1% das vendas do software. Sei que já foi utilizado em teatro, em música contemporânea e presumo que em cinema também. Mas não sei concretamente em que filme foi utilizado. Nós criamos o software e depois os utilizadores usam. Na maior parte das vezes, nem sabemos exactamente onde é que o software foi utilizado.
Para utilizar o Sound Particles, tenho mesmo de perceber teoria de som ou um amador consegue utilizá-lo?
A partir do feedback que temos recebido do ponto de vista do mundo académico… implementámos uma política em que o software é gratuito para professores, alunos e para escolas. Para quem quer, por exemplo, numa sala de aula começar a dar conceitos de design de som a alunos que nunca trabalharam com som, o Sound Particles até é particularmente interessante. A maior parte das ferramentas que temos para trabalhar são ferramentas de baixo nível e temos que trabalhar com equalizadores, compressores e pitch shifters. A maior parte das pessoas não fazem a mínima ideia do que é que aquilo faz, ou para que é que aqueles parâmetros servem. E uma abordagem tipo Sound Particles, onde as pessoas conseguem imaginar, «estou a colocar ali 100 sons a 100 metros daquele lado. Agora vou importar 400 sons que tenho aqui no meu computador de explosões» e pronto, já começa a ser algo muito mais óbvio e directo para quem não tem conhecimentos de som do que ir trabalhar directamente com ferramentas como os compressores, equalizadores e todas essas coisas.
Para finalizar, foi professor na ESTG e na Escola de Música de Lisboa até Agosto de 2018. Quais eram as aulas leccionadas e porque é que já não exerce essa função?
Dei aulas durante mais de 15 anos, desde disciplinas de multimédia, desenvolvimento, entre outras. Aqui na ESTG. Há cerca de cinco anos atrás, criei a licenciatura em Jogos Digitais e Multimédia, onde também estive a leccionar várias cadeiras do curso. Na Escola Superior de Música dava aulas à licenciatura em tecnologias da música, mais particularmente nas cadeiras relacionadas com informática, aplicadas à música e ao som. Mas agora com o projecto da Sound Particles não havia forma de gerir uma empresa com 11 funcionários e continuar a dar aulas nesses sítios, por isso coloquei uma licença para conseguir dedicar-me a 100% à Sound Particles.
Obrigado Nuno Fonseca e parabéns pelo Sound Particles!