Gravar Um Bom Disco (E Preparar Tudo o Resto)
Fernando Matias, um dos mais entusiasmantes produtores no underground nacional, residente nos Pentagon Audio Manufacturers, criou uma série de artigos com os principais conceitos que devem dominar para criarem e gravarem o melhor disco possível.
Desde 1997 que estou envolvido em gravações de discos e desde então tenho acumulado experiências e histórias que julgo poderem vir a ser de alguma utilidade para quem tiver interesse nelas, especialmente para aqueles que estão hoje a dar os primeiros passos por estes caminhos.
Com as mudanças radicais que se processaram na indústria musical nos últimos 15 a 20 anos, há alguns mitos instalados, sobre a forma como se faz e grava música, que estão agora a cair por terra. O avanço tecnológico tem sido o principal combustível dessa mudança. Não só a criação e gravação musical se faz hoje de forma consideravelmente diferente, como também a promoção e distribuição passa por pressupostos completamente alienígenas, se considerarmos a visão de 1990.
O poder está hoje, mais do que nunca, nas mãos do músico! Mas se por um lado este vê-se agora, no seu ponto de partida, numa posição criativamente livre e de quase total independência, também é verdade que está hoje, talvez um pouco mais do que antes, votado a um abandono quase total. As editoras e os empresários do ramo que antes funcionavam como filtro (entendido por alguns, eu incluído, como castrador), tinham, ainda assim, o mérito de apoiar e garantir aos músicos uma base de sustentação para iniciarem ou darem continuidade à sua actividade.
Hoje, o cenário mudou completamente e esse apoio e orientação são agora bens muito mais escassos. Com a indústria discográfica em profunda decadência, os jogadores no ramo, em particular as editoras de pequeno e médio porte, perderam capacidade de investir e, como tal, deixaram de procurar tão avidamente por novos artistas, perderam margem de manobra para arriscar e transferiram a maior parte desse risco para os músicos.
Recapitulando, o músico vê-se hoje, no seu ponto de partida, totalmente independente e criativamente livre, mas se antes bastava-lhe escrever boas canções (o que é bastante), ser capaz de as interpretar bem e ter o mérito ou boa fortuna de chamar a atenção de um produtor ou empresário do ramo, hoje vê-se na obrigação de acumular mais uma mão cheia de funções não artísticas se quiser aspirar a chegar a algum lado, entre produtor executivo, manager, agente, promotor, produtor musical, engenheiro de som, roadie, tour manager, caterer, técnico de luz, fotógrafo, designer, administrador de sistemas, realizador, editor e eventualmente mais umas quantas coisas que agora, a quente, estarão certamente a faltar-me à memória – e tudo isto de uma forma competente e organizada.
É uma carga de trabalho que, num mundo ideal, daria emprego a várias famílias. Mas como não vivemos num mundo ideal, resta pensar, em jeito de motivação, num antigo slogan de uma selecta marca de lacticínios: «Se eu não gostar de mim, quem gostará?»
A única saída possível perante este gigantesco e aparentemente asfixiante desafio é unicamente um: pôr mãos à obra (ou como diria aquele outro rapaz da auto-ajuda e do empreendedorismo: «bater punho»). É fisicamente impossível conseguir fazer tudo, mas é possível fazer bastante. As ferramentas para o fazer são hoje melhores e mais acessíveis e não é por razão nenhuma que vivemos hoje tempos muito entusiasmantes no que toca à produção musical – nunca antes se produziu tanta música, com tanta qualidade, de tantos estilos musicais diferentes e por vezes até com requintes “de época”, revelando uma maturidade e uma preocupação em preservar uma memória musical colectiva que antes (o futuro dirá) ou não existia, ou, simplesmente, não estava na moda.
O principal problema nem é tanto aprender a fazer esta ou aquela tarefa – o Google e o YouTube estão aí para ensinar tudo – é saber por onde começar, como preparar um trabalho e, depois disso, como enfrentar o mundo sozinho.
Nestes artigos vou focar-me prioritariamente no processo de produção musical. As outras matérias serão abordadas de forma mais superficial, fundamentalmente por fugirem ao meu domínio de conhecimentos. No que respeita a produção musical, o meu objectivo aqui é tentar fazer incidir alguma luz sobre o caminho a tomar para a gravação de um disco (e não de um disco qualquer, mas de um bom disco – abaixo de 7/10 é apenas assim-assim), um caminho que se tornou aberto e livre, mas não menos repleto de armadilhas que poderão fazer tropeçar os mais ingénuos e inexperientes.
Note-se, não há problema algum em ser-se ingénuo, inexperiente e, consequentemente, “tropeçador”, isso apenas se tornar um problema caso se insista em re-incidir no erro e se adopte o tropeção como estilo. O nosso guião para preparar tudo, fazer as coisas bem feitas e, assim, ficar em melhor posição para atingir objectivos será o seguinte: Ensaiar Bem; Pré-produzir; Preparar uma gravação; Gravar fora ou gravar em casa?; A solução mista; Como escolher um estúdio?; Fotografia, vídeo, promoção, merchandise; Abordar editores, agentes, managers, auto-edição; Pré-produzir um concerto.
OS RADIOHEAD COMO BOM EXEMPLO INTERNACIONAL | Desde o “In Rainbows” que os Radiohead se auto-editam no domínio digital, com direitos exclusivos sobre o seu trabalho. No caso de “In Rainbows”, licenciaram o trabalho para uma impressão física à XL Recordings, uma editora independente com uma fracção do tamanho da gigante EMI, editora que lançou os seis primeiros álbuns da banda. Apesar de terem beneficiado das mordomias e da capacidade de negociação de uma major-label durante mais de uma década, os Radiohead foram pioneiros e corajosos no momento em que toda a gente bloqueava e se questionava «e agora?!», tendo quebrado, com sucesso, as rotinas habituais da indústria mainstream e invertido o jogo a seu favor.
MIKE GHOST COMO BOM EXEMPLO NACIONAL | Mike Ghost usa todas as suas capacidades como fotógrafo, realizador e artista gráfico em causa própria e em complemento da sua actividade enquanto músico e escritor de canções. É o exemplo DIY (do it yourself/faz tu mesmo) herdado do punk: se, para além da música, tens mais alguma capacidade, se a tua vida profissional te disponibiliza ferramentas úteis, usa-as a teu favor.
O TOPO DO MERCADO | As editoras e os empresários do ramo antes funcionavam como filtro (entendido por alguns, eu incluído, como castrador). Tomavam o pulso ao zeitgeist musical do momento e ditavam as novas tendências, escolhiam os artistas e decidiam que música via a luz do dia e que música ficava na gaveta. Tinham, ainda assim, o mérito de apoiar e garantir aos músicos uma base de sustentação para iniciarem ou darem continuidade à sua actividade e orientá-los nos processos não directamente relacionados com a produção musical. Hoje, apenas o grande mainstream continua a funcionar mais ou menos nesses mesmos moldes: um produtor descobre um artista, escreve ou contrata um escritor de canções, contrata músicos de sessão, produz o disco e insere-o na máquina de promoção de uma editora multinacional).