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Gravar Um Bom Disco (E Preparar Tudo o Resto): Pré-Produção

Gravar Um Bom Disco (E Preparar Tudo o Resto): Pré-Produção

Fernando Matias

Fernando Matias, um dos mais entusiasmantes produtores no underground nacional, residente nos Pentagon Audio Manufacturers, criou uma série de artigos com os principais conceitos que devem dominar para criarem e gravarem o melhor disco possível. Neste segmento, iniciamos a pré-produção.

A pré-produção é, fora da esfera profissional, a rotina de trabalho mais mal tratada, ignorada e incompreendida na história das gravações de discos. E isto acontece  fundamentalmente por não haver uma noção clara do que é e para que serve. Uma pesquisa  de 30 segundos levou-me até à Wikipedia, que me disse o seguinte (a definição original é em inglês, a síntese e a tradução são da minha responsabilidade):

«Na indústria musical, pré-produção é o período no qual um artista cria e amadurece as suas ideias musicais, e produz uma gravação com demos ou esboços por forma a avaliar o  seu potencial. Isto poupa tempo e dinheiro em estúdios caros. O objectivo é entrar na  produção principal com as ideias base já bem definidas».

Como a minha colaboração com a Arte Sonora não se resume a fazer pesquisas de 30 segundos no Google e a fazer um copy paste da primeira página que me aparece nos resultados, tenho  obrigatoriamente de dizer que esta definição, apesar de ser um bom ponto de partida para compreender os mistérios da pré-produção, é muito incompleta.

Em primeiro lugar, uma pré-produção pode ser aquilo que o artista quiser. O objectivo é  preparar uma gravação e cabe ao artista decidir aquilo que quer levar feito de casa, para  poupar tempo e dinheiro, e aquilo que deseja trabalhar já dentro do estúdio com produtores  e engenheiros. A razão pela qual é necessário (ou, no mínimo, muitíssimo recomendável)  produzir uma demo de pré-produção é, precisamente, para simular o processo de gravação,  encontrar respostas para quaisquer tipo de dúvidas ou dificuldades que surjam e, last but not least, testar a qualidade dos intérpretes e das composições.

Onde quer que o trabalho de pré-produção seja realizado, há alguns pontos que têm  obrigatoriamente de ficar bem resolvidos durante este processo: 1) Composição base; 2) Arranjos; 3) Alinhamento e 4) Preparação Técnica e Logística.

COMPOSIÇÃO BASE

Este é o esqueleto primordial das canções. Pode ser apenas uma linha vocal e uma  sequência de acordes, mas é o primeiro ponto a necessitar de solução. Gravar uma demo, mesmo que de forma muito rudimentar, com um telemóvel por exemplo, é um método válido de pré-produção. O interesse aqui é ouvir a composição do lado de fora. É estranho, mas é comum apenas nos apercebermos do real valor das nossas ideias musicais quando somos confrontados com a sua versão gravada.

Este distanciamento oferece perspectiva e acrescenta tridimensionalidade às composições. Coloca a alma e as tripas do compositor no espaço e é esta exposição, por vezes cruel e prematura, que ajuda a apurar o sentido de auto-crítica. Nada é pior do que compôr, fechado numa bolha, para o próprio umbigo. O objectivo disto tudo é ter outras pessoas a ouvir mais tarde, por isso, bolhas e umbigos são ferramentas de trabalho que podem tornar-se perigosas.

Não estou a dizer para colocarem agora no YouTube a demo que gravaram anteontem sentados no WC. Disponibilizar esboços demasiado prematuramente ao público em geral apenas tem  interesse para artistas com audiências sólidas e ávidas por novidade e, mesmo assim, esse artista saberá proteger-se e não disponibilizará nada que o comprometa, estará antes a tirar proveito da viralidade potencial de um conteúdo inédito, especialmente se o formato for arrojado.

Se não for este o vosso caso, reservem as vossas primeiras demos a um círculo de proximidade mais íntimo. Gravem, ouçam e analisem, façam retoques, mostrem a um ou dois amigos próximos cuja opinião seja importante para vocês e escutem o que essas  pessoas têm para dizer.

ARRANJOS

Os Queen têm duas versões completamente diferentes do hit single “We Will Rock You”. A original é a que todos conhecemos e foi lançada em 1977, no álbum “News Of The  World”. Há no entanto outra versão, em formato hard-rock-up-tempo, que a banda tocava  ao vivo e que ficou registada para posteridade no álbum “Live Killers”, de 1979. Este exemplo demonstra que uma canção pode ser coisas muito diferentes. Por isso, talvez não seja má ideia definir bem essas coisas.

Para que no “Dia 1” no estúdio haja muitas certezas e poucas dúvidas sobre o que vai acontecer no capítulo dos arranjos, nomeadamente, se vai  ser o “We Will Rock You” de 77, o de 79 e, já agora, como.

Arranjem forma de gravar em multipistas todo o esqueleto e arranjos da vossa composição. Se estiverem agora de nariz  torcido, deixem-se de m*rdas, não é assim tão difícil, hoje em dia até já é possível fazê-lo com um telemóvel, um pequeno interface, um microfone e uns headphones. Gravem, ouçam e analizem. É frequente acontecerem erros de composição que apenas se tornam  óbvios após gravados. Durante os ensaios a escuta geral poderá não ser a mais nítida, para além de que cada músico estará mais concentrado na sua performace, perdendo facilmente a noção do colectivo.

Uma gravação será uma ferramenta bastante útil para perceber se toda a gente está a tocar o mesmo acorde (pelo menos nos momentos em que é suposto toda a  gente estar a contribuir para o mesmo acorde) ou a respeitar os padrões rítmicos do colega do lado. Aprendam com os erros, corrijam as falhas e, em menos de nada, as vossas  construções tornar-se-ão mais sólidas.

No próximo artigo vamos continuar em modo pré produção e focar os pontos que faltam. Podem ler ou recordar o Artigo de Introdução. Artigo Sobre Ensaios. Artigo Sobre a Sala de Ensaios. Sobre os Instrumentos.