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Gravar Um Bom Disco (E Preparar Tudo o Resto): Pré-Produção III

Gravar Um Bom Disco (E Preparar Tudo o Resto): Pré-Produção III

Fernando Matias
Elgin County Archives

Fernando Matias, um dos mais entusiasmantes produtores no underground nacional, residente nos Pentagon Audio Manufacturers, criou uma série de artigos com os principais conceitos que devem dominar para criarem e gravarem o melhor disco possível. Neste segmento, os últimos retoques antes de entrar em estúdio.

Nos segmentos imediatamente anteriores tratámos da pré-produção, da demotape e de aspectos funcionais relacionados com a gravação. Apesar de termos prometido encerrar o assunto no artigo passado, há ainda assuntos relacionados com a pré-produção que valem a pena recapitular.

Chegamos assim aos preparativos finais antes de entrarmos em estúdio. Estes últimos pontos de carácter quase exclusivamente técnico e funcional são muito frequentemente negligenciados pelos músicos, especialmente no circuito amador e semi-pro, e são responsáveis pelo desperdício de muitas horas de estúdio que de outra forma não seriam necessárias ou poderiam antes ser usadas para colocar a cereja no topo da produção.

Podem ler ou recordar o Artigo de Introdução. Artigo Sobre EnsaiosArtigo Sobre a Sala de EnsaiosSobre os Instrumentos. E a Pré-Produção I (a demotape) e Pré-Produção II (Detalhes Funcionais). Bem-vindos ao capítulo ao qual quase ninguém liga e que, não por acaso, pode ajudar muito a marcar a diferença… (rufo de tarola): A preparação técnica e logística!

REFERÊNCIAS

É muito provável que, ao contactarem um produtor, este vos peça referências. Que artistas vos inspiram, quais os artistas cujo o som vos agrada e que tipo de som procuram para o vosso projecto. Estas perguntas, que podem ser muito explícitas e directas ou podem ocorrer de forma mais informal durante os primeiros contactos, servem, essencialmente, para o produtor se contextualizar, avaliar e estudar o vosso projecto, perceber se tem interesse ou capacidade para fazer o trabalho e fazer os preparativos necessários para o executar.

De uma forma muito simples, o produtor estará a avaliar se fará sentido trabalharem juntos e, caso a coisa avance, a preparar-se para vestir a vossa camisola e a tornar-se no vosso quinto Beatle. Se tiverem oportunidade levem o produtor a um concerto vosso e mais importante, ao vosso local de ensaios. Estarão a proporcionar-lhe boas oportunidades para tomar o pulso à energia da banda, perceber o vosso som, ver o vosso equipamento e ouvir as novas canções. Toda esta informação será preciosa para ajudar a definir o rumo da produção.

É igualmente muito provável que o produtor vos peça música para ouvir e que queira sentar-se convosco para a analisar e discutir, música vossa (trabalhos passados e demos de pré-produção) e das vossas referências, por forma a estudar os pontos de contacto existentes e melhor preparar o trabalho. Se tudo isto for feito antecipadamente, antes do dia #1 no estúdio: perfeito! Não tenham receio nem pudor de apontar referências, todos os músicos as têm e negá-lo demonstra ou ingenuidade ou arrogância. É com alguma pena que vos digo que a música já foi quase toda inventada e que, no actual capítulo das coisas, o mais provável é andarem a fazer fusões ou reinvenções de coisas que já foram feitas há décadas. Não há volta a dar, há muitos anos que o planeta tem milhares de milhões de pessoas a expressar-se através do som e das canções.

Tenham cuidado com as referências que enunciam porque elas terão de fazer sentido e ser coerentes com a música que pretendem produzir. Aconteceu-me uma vez pedir referências de som de bateria a uma banda que praticava um rock bastante forte, muito inspirado na escola de produção norte-americana, e uma das referências enunciadas foi Dave Mathews Band. Compreendi que o baterista desejava um som com precisão e clareza cirúrgicos mas, do ponto de vista estilístico, a referência acabou por não ter grande utilidade práctica.

As vossas referências não só têm de ser coerentes com o estilo de música e a textura geral pretendida no produto final como têm de ser coerentes com as vossas composições e com os instrumentos que usam. Se a tarola da vossa referência fizer “Baaam!”, mas tiverem um fetiche especial pela vossa piccolo de 13 polegadas que faz “Poc!”, estarão a disponibilizar informação contraditória, que apenas servirá para confundir as coisas. Se as guitarras da vossa referência tiverem aquele grão característico de uma afinação aberta ou em drop, mas todas as vossas composições forem executadas numa afinação E standard, estarão a incorrer no mesmo tipo de erro. Sejam muito claros e objectivos no que querem e tentem ilustrar as vossas ideias com a maior acuidade possível, sob pena de verem as vossas expectativas frustradas. Se acharem apropriado, aconselhem-se junto do vosso produtor. Ele provavelmente já terá ouvido muitos mais intrumentos, amplificadores de guitarra, baterias, processadores de efeitos e sabe-se lá mais o quê do que vocês e deverá saber apontar-vos na direcção correcta.

A menos que a vossa vontade seja a de se colocarem 100% nas mãos do produtor e sairem do estúdio com um disco surpresa (o que até poderia ser interessante), toda esta questão das referências terá de ser levada muito a sério.

ORGANIZAR A PERFORMANCE

Há alguns anos, um guitarrista apareceu-me numa sessão de gravação com um processador de efeitos acabadinho de comprar. Nunca tinha tocado com ele e apenas me apercebi disso quando, ao fim de alguns minutos, o vi muito perdido a vaguear pelos menus e sub-menus do equipamento, sem saber o que fazer. Não há nada de errado em explorar novos equipamentos no estúdio, mas lembrem-se que poderá tornar-se muito demorado e muito dispendioso.

A organização da performance consiste em definir bem que instrumentos e equipamentos (e respectivas configurações) serão usados, em que canções e em que afinações. Inclui também a definição do kit de bateria e percussão, programação de processadores de efeitos, teclados, sintetizadores, samplers, etc. Façam um plano que sirva de guião para facilitar os trabalhos e definam qual o elenco de instrumentos, efeitos e outros equipamentos a usar.

Obviamente que a ida a um estúdio abre sempre possibilidades e é bastante provável que acabem a fazer parte do trabalho com equipamentos residentes e a fazer experiências, mas independentemente disso, tentem chegar ao estúdio com a vossa performance o mais preparada possível. Produtores e engenheiros saberão certamente aproveitar o melhor dos dois mundos. Tentem no entanto ser sintéticos e preparar uma performance que sirva as canções em vez de uma que seja um mostruário da vossa colecção de brinquedos. Evitem também aparecer no estúdio com um instrumento ou equipamento que nunca usaram na vida ou cujo funcionamento seja ainda uma incógnita.

ÚLTIMOS ENSAIOS

Os últimos ensaios antes da entrada em estúdio são aqueles em que, supostamente, já não deverá haver grandes dúvidas sobre aquilo que terá de acontecer assim que a luz do rec acender. A sua principal utilidade é rotinar a performance e automatizar movimentos, por forma a que a execução das malhas seja sólida, fluída e previsível. Um músico bem preparado deverá ser capaz de tocar as suas partes em dois ou três takes.

Um produtor poderá querer insistir um pouco mais, caso as repetições denunciem um crescendo de rendimento do músico, mas desenganem-se se acharem que, se não conseguiram despachar uma parte em vinte takes, que será no vigésimo primeiro que, subitamente, tudo irá soar melhor. É muito improvável. Aproveitem a vossa pré-produção para se pôrem à prova. Se em cinco takes não conseguirem tocar uma parte, ou se apenas acertarem um em cada três, então é porque ainda não estão preparados para a tocar. Não se iludam, estarão apenas a enganar-se a vós próprios.

Estes últimos ensaios deverão também ocorrer em circunstâncias o mais semelhantes possível àquelas em que ocorrerão as captações. Uma vez fui assistir a um ensaio de uma banda antes de a gravar e o baterista tinha um kit perfeitamente standard: bombo, tarola, três toms, choques, ride e dois crashes. Tudo normal. O problema foi que nas vésperas da gravação contactou todos os amigos bateristas e no dia das captações apareceu no estúdio com um kit de 17 peças. Como seria de esperar, a performace foi pouco objectiva, fértil em hesitações e um dos timbalões extra, devidamente micado, não chegou a ser tocado uma única vez durante todo o disco. No final correu tudo bem mas, como devem calcular, esta não é a melhor forma de se fazerem as coisas.

As sessões de gravação terão de ser uma espécie de prolongamento dos últimos ensaios, apenas num local diferente. Mesmo que haja diferenças (e existirão certamente), deverão ser apenas pequenos detalhes ou subtilezas. De outra forma, ensaiar não terá servido para nada.

REVISÕES & SETUPS

Será sempre de valor levar os intrumentos e equipamentos à revisão antes de entrarem em estúdio. Façam um double check e a seguir a isso um triple check. Vejam se tudo funciona na perfeição e se todo o equipamento está em condições. Se o vosso amp de guitarra estiver com problemas de identidade, aproveitem a oportunidade para o mimar um pouco e ofereçam-lhe um revalvulamento. Cordas novas, peles novas, palhetas novas e baquetas novas são, salvo raras excepções, absolutamente obrigatórios. Pratos rachados, equipamentos ruidosos ou incapazes de estar à altura são, salvo raras excepções, absolutamente proibidos.

LOGÍSTICA

A chegada ao estúdio exigirá muito provavelmente o transporte de muitos kg de equipamento, a menos que escolham um estúdio cuja mais valia seja, precisamente, a sua oferta de backline. Avaliem no entanto as vantagens e desvantagens que isso possa trazer.

As vantagens são: menos custos de transporte; esses equipamentos serão, muito provavelmente, de qualidade acima da média e terão as revisões em dia; poderão dar motivação extra e estimular a criatividade. As desvantagens são: poderá acarretar custos de aluguer adicionais; o som da banda poderá perder identidade; há o risco de dispersão e desperdício de tempo.

De uma forma ou de outra, façam o planeamento desta logística por forma a que corra tudo pelo melhor. No caso de alguma insuficiência, poderá ser de considerar a hipótese de pedir emprestado, negociar um patrocínio (boa sorte por esta via) ou fazer um aluguer a terceiros. Se se sentirem muito perdidos nestes territórios, aconselhem-se junto do produtor e engenheiros que, certamente, vos apontarão na direcção certa.

No caso de captações muito especiais, que exijam trabalho de exterior, como por exemplo a captação de um coro ou de um piano num auditório, tenham presente que toda essa logística terá de ser muitíssimo bem planeada e coordenada entre todas as partes envolvidas.

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