Kayhan Kalhor, A Longa Travessia do Deserto de Um Músico Prodigioso
A atribulada história de Kayhan Kalhor começa quando deixou o Irão pela primeira vez, aos 17 anos de idade, tendo caminhado mais de 4000 quilómetros até à Itália. Levava consigo apenas dois objectos: uma pequena mochila e o seu instrumento musical, o kamancheh – um pequeno violino de quatro cordas que emite sons delicados.
A história de Kayhan Kalhor precipitou-se durante a Revolução Iraniana, que ocorreu em 1979 e que transformou aquele país, até então uma monarquia autocrática pró-Ocidente, comandada pelo Xá Mohammad Reza Pahlevi, numa república islâmica teocrática sob o comando do aiatola Ruhollah Khomeini. Kayhan Kalhor foi o único da sua família – de ascendência curda – a deixar o país. Os seus pais ficaram para trás juntamente com o outro filho. Na sua longa viagem, Kalhor atravessou dois continentes, do Irão à Turquia, passando pela Roménia, caminhando pelo que era então a Jugoslávia, com Itália como destino.
Nessa altura, era já um jovem músico muito promissor – uma criança prodígio. Aos 13 anos de idade, foi convidado a juntar-se à orquestra nacional de rádio e televisão do seu país. E porque começou a aprender o seu ofício tão cedo, teve a oportunidade de aprender com os virtuosos mais velhos – antes da revolução, antes da música ser totalmente banida. Quando chegou a Roma, estudou música clássica ocidental e, mais tarde, mudou-se para o Canadá, onde obteve um diploma de música na Universidade de Carleton, em Ottawa.
Quatro anos após Kalhor ter deixado o Irão, os seus pais e irmão foram mortos num ataque de mísseis que atingiu a sua casa durante a devastadora guerra Irão-Iraque que se seguiu à revolução iraniana. E durante muitos anos, Kalhor não falou publicamente sobre a sua vida pessoal, ou sobre o que tinha sofrido. Deixou que a sua música arrebatadora e bela falasse por ele: música que tem as suas raízes numa erudição rigorosa, uma tradição tão distinta e tão preciosa que foi nomeada para a lista das Nações Unidas da herança cultural intangível da humanidade.
Kalhor é agora um dos mais famosos intérpretes e compositores do Irão, com uma reputação global, sendo parte integrante do Silkroad Ensemble, o colectivo artístico fundado por Yo-Yo Ma, que se tornou um amigo próximo. Escreveu música para o cineasta Francis Ford Coppola e colaborou com uma série de artistas de renome, desde o Kronos Quartet, Brooklyn Rider e a Filarmónica de Nova Iorque até Toumani Diabaté ou o pianista de jazz holandês Rembrandt Frerichs.
Em 1991, depois de se ter licenciado em Carleton e obtido um passaporte canadiano, Kalhor sabia que era tempo de explorar novamente vistas mais amplas. «Pensei que talvez houvesse um ambiente melhor para mim, para me apresentar e para a minha música», diz. Assim, mudou-se para Brooklyn, onde esteve baseado durante muitos anos e onde começou a construir uma carreira internacional. No final dos anos 1990, estava a gravar álbuns a solo que cresceram em colaborações com outros artistas e selos de produtores como a ECM Records. Em 2000, foi convidado a viajar para Massachusetts para um workshop de colaboração com o famoso violoncelista Yo-Yo Ma e dezenas de músicos internacionais. Esse projecto cresceu até se tornar o conjunto Silkroad.
Nessa altura, à medida que a sua carreira internacional florescia, a vida de Kalhor parecia não estar vinculada pelas restrições do passaporte que transportava. «Para dizer a verdade, nunca pensei em tornar-me um cidadão americano permanente naquela altura. Era um cidadão canadiano e um cidadão iraniano, por isso tinha um passaporte canadiano. E costumava viajar muito confortavelmente de um lado para o outro». Kalhor tinha um visto de trabalho que os EUA concedem aos estrangeiros de extraordinária capacidade nas artes. «Renovei-o de dois em dois anos, paguei os meus impostos [americanos]. Por isso nunca pensei que fosse necessário um ‘green card’ americano até que o 11 de Setembro aconteceu. E as coisas ficaram… um pouco mais difíceis».
Sempre pensei nos EUA como um lugar onde tudo é feito de acordo com o mérito das pessoas, não pela cor da sua pele ou a sua raça
Em 2001, as taxas para vistos aumentaram substancialmente – tal como o tempo médio de espera para o processamento da papelada, que se multiplicou de semanas para até seis meses. E, depois do 11 de Setembro, houve um grande aumento da atenção de segurança prestada aos cidadãos iranianos nos EUA. Após a aprovação da Lei Patriota em Setembro de 2002, a administração do Presidente George W. Bush criou um programa controverso chamado Sistema Nacional de Registo de Entrada e Saída de Segurança (NSEERS).
Este programa obrigava ao aumento do rastreio de viajantes de 25 países – 24 dos quais predominantemente muçulmanos, incluindo o Irão. Os titulares de vistos desses países eram obrigados a registar-se à chegada aos Estados Unidos (o que significava serem sujeitos a impressões digitais, fotografados e interrogados), bem como a registarem-se regularmente com os funcionários da imigração enquanto se encontravam nos EUA. O NSEERS foi suspenso pela administração Obama em 2011, e terminou completamente em 2016.
Kalhor achou o sentimento anti-muçulmano nos EUA tão difícil de suportar que, em 2002, decidiu regressar ao Irão, apesar das restrições do seu país natal. Além de continuar a actuar e a escrever lá, dedicou parte do seu tempo ao ensino. Nos anos que se seguiram à revolução, quando tantos músicos iranianos proeminentes deixaram o país, ele sentiu a responsabilidade de cultivar uma nova geração de talentos. Foi nesse período que Kalhor conheceu Zohreh Soltanabadi, o seu grande amor. Zohreh partilha a outra paixão de Kalhor: os cavalos. Apaixonaram-se e começaram a construir uma vida juntos em Teerão. Esse romance foi retratado no documentário “The Music of Strangers: Yo-Yo Ma & the Silk Road Ensemble”, um filme de 2016 realizado por Morgan Neville e galardoado com um Oscar.
Foi um tempo de esperança para o casal. No entanto, apenas um mês depois, o chão voltou a fugir a Kalhor: após a resposta violenta do governo ao ‘Green Movement’, que desafiou os resultados das eleições presidenciais no Irão, Kalhor sentiu que não podia ficar no seu país. Era tempo de partir, outra vez. Kalhor encontrou uma propriedade rural em Cherry Valley, Califórnia, casou e ambos tentaram solicitar um ‘green card’ – estatuto de residente permanente nos EUA. Mas, pouco tempo depois, o pai de Soltanabadi morreu. A mãe de Soltanabadi precisava dela no Irão e, com Kalhor a viajar tão frequentemente, Soltanabadi regressou a casa, onde permaneceu durante três anos.
A vida no Irão tornou-se ainda mais difícil do que era em tempos, diz Soltanabadi. As sanções dos EUA e o recuo do governo americano em relação ao acordo nuclear de 2015 resultaram numa grave crise económica no seu país natal. Não só não foi capaz de construir nos EUA o negócio de reprodução que esperava, como o seu trabalho em casa também sofreu. Entretanto, o clima político no Irão continuou a causar estragos na vida artística de Kalhor. Em Junho de 2015, estava programado para tocar o seu primeiro concerto no Irão em seis anos, mas menos de uma semana antes do concerto, as autoridades cancelaram o espectáculo, citando «preocupações não especificadas de segurança».
Após esse incidente, Kalhor jurou não voltar a tocar no Irão «enquanto a arte e a cultura forem mantidas reféns». Foi um capítulo difícil para um dos embaixadores culturais mais visíveis e mais amados daquele país.
Na Primavera de 2017 – poucos meses após a proibição inicial do Presidente Trump aos viajantes de vários países de maioria muçulmana, incluindo o Irão, ter entrado em vigor – Soltanabadi teve finalmente uma entrevista na embaixada dos EUA em Ancara, Turquia, para a sua entrevista para a obtenção do ‘green card’. Kalhor já tinha tido a sua candidatura a residência permanente nos EUA concedida.
Uma vez que os EUA não têm uma presença diplomática no Irão desde 1979, os iranianos que procuram entrar nos Estados Unidos devem ir a um terceiro país para as suas entrevistas para obtenção de visto. A Turquia é um destino comum. Os requerentes suportam os custos dessas viagens, juntamente com todas as suas outras despesas de imigração. Kalhor recebeu entretanto a confirmação de que a sua carta verde estava segura, e que pode ir e vir como residente permanente dos EUA, mas Soltanabadi não. Após o seu pedido de carta verde ter sido negado, ela permaneceu no Irão. E ele também.
Kalhor ainda viaja frequentemente para os EUA para actuar, mas decidiu que não pode viver separado da sua esposa, apesar de ainda passar a maior parte do seu tempo na estrada. «Basicamente, vivo na América do Norte há mais de 30 anos. Sempre pensei nos Estados Unidos como um lugar diferente – como um segundo país para mim. E um lugar onde tudo é feito de forma diferente, de acordo com o mérito das pessoas, não pela cor da sua pele, ou pela sua raça, ou qualquer outra coisa».
Uma vez mais – e tantos anos depois de sair do Irão – Kalhor viu-se separado do país a que um dia chamou lar. Entretanto, Kalhor, agora a viver com a sua esposa em Teerão, continua a tentar fazer com que a sua amada música clássica iraniana chegue ao maior número de pessoas possível. Em 2017, viajou por todo o Irão, dando 70 concertos – muitos deles gratuitos – em áreas remotas e particularmente empobrecidas do país.
Este artigo é uma adaptação de uma grande reportagem da National Public Radio. Podes ler o artigo completo aqui.
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