:PAPERCUTZ, Diário da Digressão de “King Ruiner” no Japão
:PAPERCUTZ é o projecto do produtor Bruno Miguel com a participação de várias artistas convidadas. O álbum “King Ruiner” foi o pretexto para embarcar numa tour pela Ásia que, inevitavelmente, foi afectada pela Pandemia Covid-19.
Os :PAPERCUTZ tinham planeado uma digressão pela Ásia, com concertos no território Chinês (através de apoio da Fundação Oriente), mas viram-se forçados a cancelar a maior parte das suas datas pelos vários alertas segurança do promotor local, a ModernSky, devido ao surto Coronavírus. No entanto, decidiram manter os concertos no Japão, para onde partiram no dia 07 de Março de 2020. Pedimos a Bruno Miguel, mentor do projecto, um relato da exótica experiência pela Terra do Sol Nascente enquanto o Coronavírus se propagava por todo o mundo. E para não se esquecer, naturalmente, de descrever o equipamento que viajou consigo. Deixamos, de seguida, o Bruno em discurso directo, para viajar, nas suas palavras, com os :PAPERCUTZ pelo Japão…
Bruno Desu (o meu nome é Bruno), Arigatou gozaimasu (muito obrigado) ou Sumimasen (peço desculpa ou com licença) são as únicas expressões que consigo pronunciar em Japonês e que me serviram bem em toda a última digressão dos :PAPERCUTZ, antes de uma paragem forçada por esta pandemia. Infelizmente, o Inglês não é uma língua muito presente no Japão, mas o comportamento social facilita a interacção. Apesar do imenso pudor, neste país longínquo onde regras imperam, a simpatia foi uma agradável surpresa. Na dúvida, se baixarem a cabeça na presença de alguém num sinal de respeito, é meio caminho para conseguirem explicar o resto por gestos, e assim nos conseguimos ‘safar’ (para usar expressão bem portuguesa) no país do Sol Nascente…
Esta digressão foi preparada com meses de antecedência. Inicialmente incluía a China e o Japão, tudo com equipas distintas e de forma a promover o lançamento de um novo álbum de nome “King Ruiner”, editado no Japão de forma física pela Moorworks, responsável por álbuns de Of Montreal, Clap Your Hands Say Yeah ou Unknown Mortal Orchestra, entre outros, e digital pela Kilk Records, que se tornou o nosso representante nacional e ligação a todos os outros meios, com consequente distribuição pela China e Taiwan.
Como alguns sabem, por motivos do vírus, antes ainda da sua designação oficial, as datas na China tiveram que ser canceladas. Devo ter sido das primeiras pessoas no universo musical português a lidar com esta questão. Foram os tempos mais estranhos que passei como responsável por um projecto de música. Comecei a receber notícias do promotor na China, ainda em 2019, que algo de errado se passava. Até à altura tínhamos Macau, Hong King, Zuhai, Shenzen, Cantão e Pequim como datas marcadas e o apoio da Fundação Oriente, mas o promotor comunicou-nos que, apesar de não ser oficial, havia notícias que uma doença começava a alastrar pelo país.
Estava longe de imaginar que tal se iria tornar numa epidemia e depois uma pandemia! Já no início de 2020, segundo o que me foi passado, o governo Chinês decretou o fecho das diversas salas de espectáculos e, como tal, tinha uma decisão para tomar: prosseguir com as datas no Japão ou cancelar toda a digressão. Foram diversas as conversas on-line com o agente Japonês e como o governo ainda não tinha decidido decretar qualquer tipo de estado de emergência, decidimos prosseguir com esta parte dos concertos.
Tive que ponderar a segurança das pessoas que viajam comigo, fizemos seguros de saúde, a minha própria família ficou preocupada, mas não quis sucumbir ao pânico e prosseguir com o planos. Afinal tínhamos um álbum para promover e eu considero que ser músico é um projecto de vida, não apenas um trabalho.
Por norma, nunca durmo no dia de viagem de início de um digressão nem na volta. A ideia é sempre estar pronto para qualquer imprevisto e consigo passar bastante tempo acordado pela madrugada dentro. E tudo com o devido tempo para lidar com as companhias de avião e segurança no aeroporto que se tem tornado cada vez mais complicada. Os músicos que viajam em digressão vão perceber bem o que digo: as malas fora de formato; a lista de material entregue na alfândega; o cuidado por levar numa mala de mão a roupa e equipamento essencial, caso as restantes malas sejam extraviadas; entre outras situações.
A questão é sempre a mesma, viajamos para trabalhar e temos que pensar nisso, sempre. Alguns aeroportos são bem complicados. Sugiro a qualquer um uma experiência na Tailândia. Mesmo com um promotor de um festival ao meu lado foi algo extremamente confuso. Felizmente, no Porto o processo é pacífico e as pessoas normalmente simpáticas. É algo que me deixa sempre bastante orgulhoso quando parto desta cidade. Um aeroporto e as pessoas que lá trabalham pode logo dizer muito sobre uma região. A Shannon (Maree) vai ter comigo à fila que cresce no check-in. Uma cantora neozelandesa que tem viajado pelo mundo à procura de novas experiências. Tem vivido em Portugal e produz o seu próprio projecto musical, com formação em jazz, mas um gosto por música electrónica. Somos uma equipa de apenas dois, pois o promotor garantiu-me a presença e profissionalismo de técnicos em cada uma das actuações e assim partimos para uma viagem bem longa.
Mal aterramos, seguimos para o primeiro hotel, em Chiba. Depois de um banho quente, começo por rever a sessão digital do concerto. Nos últimos tempos a música electrónica tem-se pautado por um período nostálgico de algumas ferramentas, sintetizadores ou caixas de ritmos clássicas. Não pondo isso em causa, porque também as uso, penso que se perdeu o enorme potencial de um computador.
RIGGED
Aliás, muito do trabalho feito neste álbum passa precisamente por gravações de alguns instrumentos e depois de tratar os resultados no domínio digital, além de que permitiu-me trabalhar nas canções em diversos lugares e, ao mesmo tempo, voltar a descobrir novos processos na música electrónica. E isto aplica-se aos concertos também. O Ableton Live serve de sequenciador principal (em estúdio uso Logic Pro X ou Pro-Tools, de acordo com as características do projecto) ligado a uma placa de áudio RME Fireface UCX e com uma extensão por ADAT a um RME ADI-8 Pro de forma a obter saídas balanceadas adicionais. Além disso, a sua enorme maleabilidade em teremos de programação, seja de forma nativa ou através de uma extensão em Max MSP, permite definir roteamento e processamento interno em tempo real, o que seria impensável alguns anos atrás sem andarmos carregados de material.
Para controlo de instrumentos MIDI, uso uma MOTU MIDI Express 128 que envia mensagens de nota e relógio a um Moog Minitaur e um Kaoss Pad 3. O Moog é responsável pelas linhas de baixo e o Kaoss Pad é utilizado como processador de efeitos táctil e looper. A ideia é que ao longo do concerto existam linhas musicais pré definidas, pois há claramente um limite físico no que consigo estar a tocar, mas através de um teclado/controlador Akai MPK 61 totalmente programado por mim, posso alternar entre os diversos instrumentos, tanto físicos como virtuais, sobretudo aqueles que ao longo da música vão assumindo um destaque. Uso ainda um pedal TC Helicon Doubler para processar a minha voz sobretudo como Coro e uma guitarra Fender Custom de 12 cordas que foi criada de propósito para “King Ruiner” pelo luthier Luis Farinha.
A vocalista conta também com um TC-Helicon Voice Live 3 Extreme como looper e para processamento de voz ou harmonias que recebe por acordes MIDI do mencionado MOTU e um Arturia Microbrute para algumas linhas de sintetizador, além de alguns instrumentos de percussão. Para finalizar temos ainda uns sistemas de luzes strobe DMX, que são controlados pelo sequenciador principal e que, em alguns cenários, podem ser ligados a uma arquitectura já montada.
Um concerto de :PAPERCUTZ é algo bastante mutável e cresce de acordo com músicos envolvidos. Já incluiu desde percussionistas a um quarteto de cordas e outro de metais, mas também tem que ser suficientemente pensado para nunca se carregar material que não irá ser devidamente utilizado ou que não possa ser substituído por backline. Foi algo que aprendi à custa de algumas dores de cabeça, pois já toquei desde grandes festivais com line checks apenas e pouco tempo de change over, a salas sem grandes condições técnicas em que cabe a nós manter alguma qualidade pois, no fim de contas, é o nosso trabalho que está em causa.
Como nota adicional, apesar de tecer algumas críticas ao nosso país em termos culturais, posso dizer que temos dos melhores técnicos com que já trabalhei e algumas das salas mais preparadas onde já toquei e é um pouco triste assistir ao que se está a passar com estes profissionais actualmente. Felizmente, a maior parte do equipamento eléctrico que compramos na Europa trabalha com correntes inferiores, como é o caso dos Estados Unidos e Japão e apenas precisamos de adaptadores que são idênticos nestes últimos. Como já toquei várias vezes nos Estados Unidos tinha tudo o que precisava.
Seguimos para a sala onde será o nosso primeiro concerto e chegamos mesmo a tempo do soundcheck. Mal entramos, somos muito bem recebidos pela equipa técnica, que nos apresenta às restantes bandas. Algo comum que acontece é que, quando um grupo toca num lugar onde não é muito conhecido, o promotor convida bandas locais para primeiras partes. É uma forma de destas promoveram o concerto também.
よぉ!
Apesar de alguma dificuldade na comunicação, conseguimos fazer o soundcheck em boas condições e descubro que a Shannon tem alguma facilidade em apreender palavras em japonês, o que facilita algumas questões técnicas. Infelizmente para ela, um dos meus pedidos passa por bastante fumo em palco, algo que aprecio e nem sempre é fácil para um vocalista, mas chegámos a um bom compromisso!
A editora fez questão de deixar álbuns para serem vendidos após o concerto e, antes do jantar, aproveitámos para ver as restantes bandas prepararem-se e fazer questão de informar a casa que estamos dispostos a falar com quem quiser comprar o álbum e quiser saber um pouco mais sobre nós. Segue-se uma conversa com o dono da sala no backstage, que quer saber mais sobre Portugal, pois nunca saiu do Japão.
Subimos ao palco por volta das 10 da noite e fico contente pela nossa primeira actuação correr bastante bem. O responsável pelo espaço vem ter connosco e comenta o quanto gostou e que espera que regressemos. Sem tempo a perder, assinamos alguns CDs comprados, falamos com essas pessoas que ficam contentes de nos ver a tocar e seguimos de volta ao hotel. No Japão a relação com o objecto físico, apesar de estar a aumentar o número de ouvintes de streaming, continua a ser um bem apreciado, sobretudo se for comprado directamente ao artista!
Acordo cedo de forma a poder a dar uma corrida pela cidade. É um hábito meu que ajuda a manter o bom espírito e a verdade é que, numa digressão como esta, em que não temos dias livres, torna-se importante alguns escapes e um sentido de liberdade, além de derreter alguma bebida em excesso. É uma vida um pouco estranha para muitos, pois é esperado que uma banda se transforme à noite depois de um dia de viagens e questões logísticas, e o equilíbrio achado por mim nestes anos é um comportamento profundamente saudável durante o dia e em viagem e algum relaxamento à noite, antes e depois de entrar em palco.
Uma boa dose de café, vejo algumas notícias na televisão (outro hábito meu) no que me parece ser o noticiário mais curto de sempre e com alguma menção ao vírus, mas sobretudo bastantes mensagens de apoio ao governo e um estranho programa de comédia e comida. Sim, muitos programas à volta de comida. Seguimos para Kichioji, onde vamos tocar na sala que é gerida pela nossa família alargada no Japão, a Kilk.
Ao chegar somos recebidos pelo Mori Daichi, que é o responsável pela editora, e pela Ferri, a cantora japonesa convidada de “King Ruiner”, que faz parte da editora e cuja experiência de vida em Nova Iorque aliada a um Inglês perto do perfeito faz-nos sentir numa nova casa. Afinal, foi com esta editora que mantivemos uma ligação ao país nos últimos anos, pois o álbum anterior “The Blur Between Us” chegou às pessoas, rádios e revistas através do seu trabalho.
O alinhamento da noite é composto por artistas da Kilk e ouço músicos devidamente interessantes e sinto-me honrado por acabar a noite, sobretudo porque percebemos que as pessoas conhecem o nosso trabalho. Encerramos num ponto alto, com “Where Beasts Die”. Em conversas no backstage, Mori partilha comigo o quanto gosta do recente álbum e os números de vendas tímidos começam a intensificar-se, muito pela nossa presença no país.
Esta acaba por ser a importância dos concertos, sobretudo num lugar como o Japão. A melhor forma de chegar às pessoas que estão rodeadas de publicidade relativa ao entretenimento passa efectivamente por tocar ao vivo nas suas cidades. E, neste lugar longínquo, trata-se de criar uma relação duradoura. Uma vez que começam a seguir o teu trabalho, a ideia é ir voltando.
No dia seguinte, seguindo dicas do Mori, experimentamos uma das melhores refeições dos últimos tempos e partimos para um concerto numa outra das suas salas de espetáculos em Omiya. O alinhamento conta com diversos músicos, do experimental electrónico ao folk, e fechamos a noite de uma forma bastante energética. Ficamos um pouco para falar com as restantes bandas que nos perguntam como é tocar em Portugal ou no resto do mundo.
O interesse faz algum sentido, o Japão é um país muito influenciado pelo exterior, mas é raro as suas bandas tocarem fora do país. É algo que reconheço num Portugal passado e que, felizmente, começou a mudar nos últimos anos. A internacionalização sempre fez parte dos :PAPERCUTZ, foi algo orgânico na realidade, a primeira editora era canadiana e cedo percebi que o caminho do grupo seria fora de portas, mas sem descurar o trabalho nacional. Felizmente, hoje em dia, temos temas a passar em rádios nacionais e internacionais. E este tipo de contacto com estas bandas fez-me lembrar tempos em que apenas imaginava que tal pudesse vir a ser possível.
SHINKANSEN
Acordamos com a noção que temos uma viagem longa pela frente, pois seguimos para as montanhas, dando início aos concertos no interior do Japão. A travessia é feita nos comboios das redes Shinkansen, vulgarmente conhecidos como comboios bala. A nossa ideia inicial seria a típica carrinha, mas foi logo descartada pelo promotor, o que se torna rapidamente óbvio porque percebemos que o país tem dos melhores sistemas de transporte do mundo. E para surpresa de alguém que já morou num grande centro urbano como Nova Iorque, são sempre confortáveis e apresentam uma limpeza impressionante, apesar de, pessoalmente, sentir falta de algum barulho e conversas entre as pessoas.
A Shannon aproveita para algum descanso de formas que invejo, pois tenho sérias dificuldade em ficar totalmente parado, mas consigo perder-me na vista que nos vai sendo apresentada, muito diferente do lado citadino que até agora conhecemos.
Chegamos ao nosso destino de Matsumoto e após uma pequena passagem pelo hotel seguimos para a sala de concerto. Esta é a mais pequena das que já tocamos até ao momento, mas não deixa de ter o seu encanto: um ambiente DIY que deixa perceber, à medida que as pessoas entram e saem durante o nosso soundcheck, que se trata de um ponto de encontro da comunidade artística local.
Dada o ambiente um pouco mais intimista, decidimos tocar de uma forma apropriada, uma mudança no alinhamento, mais contido, o que parece agradar ao público. No fim temos uma primeira conversa com o dono, que lamenta mais pessoas não terem visto o concerto. Segundo ele, começa a sentir-se o resultado das notícias na televisão de um governo que apela às pessoas para ficarem em casa e, neste tipo de regiões, claro, são mais cumpridores que nas grandes cidades.
Pede-nos para ficarmos à conversa com quem nos veio ver e o ambiente torna-se bastante familiar, numa conversa que inclui um português a residir no Japão. Tenho tido esta experiência recorrente de encontrar os nossos espalhados por todo o mundo e o Rui, um investigador casado com uma japonesa, já com filhos e uma nova família alargada nipónica, partilha comigo pela noite dentro as particularidades deste fascinante povo.
Mesmo com poucas horas de sono, aproveitamos a manhã para conhecer um lado mais tradicional do Japão, entre a calma de alguns espaços históricos e um tempo ameno, pois sabemos que temos que partir para Umeda.
Infelizmente, e ao contrário de toda a experiência até ao momento, o técnico é longe do ideal e temos diversas dificuldades tanto na comunicação por um Inglês muito limitado e algumas questões técnicas que atribuo a uma falta de experiência. A Shannon chama-me a atenção que talvez esteja a ser demasiado duro, mas admito que por algum cansaço não deixo de lado as minhas exigências.
Ela, que já viveu no Camboja chama-me a atenção que na Ásia, no geral, a discussão não é algo bem visto (algo que, aliás, me lembro da conversa da noite anterior). Sendo do norte, por vezes sou assaltado por alguma falta de calma e os efeitos um pouco nocivos de falta de descanso começam a sentir-se, o que acontece ao longo de uma digressão. O truque é, precisamente, ouvir a mensagem que o nosso corpo nos está a mandar. Assim sendo, depois de um concerto que, como previa, não corre muito bem, seguimos directamente para o hotel e embrulhei-me num kimono oferecido e entre lençóis e durmo o máximo que posso.
HALFWAY THERE
Chegando a Nagoya tudo parece diferente. O sol brilha e tenho boas notícias da venda do álbum, através de um elemento da editora Moorworks, o Yoshi, que nos vem conhecer em pessoa e ver o concerto. Além disso, recebo notícias por e-mail de outras pessoas com quem trabalho que o single ‘Halfway There’ está a ser tocado por várias rádios, desde a Antena 3, em Portugal, à BBC, no Reino Unido, e a Triple j, na Austrália.
Apesar de alguma pressão por termos que mostrar o nosso melhor perante alguém que apostou no nosso trabalho, o concerto corre em perfeitas condições. Tal como já tinha acontecido em outras salas, pedem-nos um encore e tocamos um tema em piano e voz apenas e a Shannon mostra o porquê de a ter escolhido com uma performance irrepreensível. Terminamos a noite em conversa com o Yoshi na qual demonstramos quanto apreciamos a sua cultura e este fica surpreendido por a conhecemos de todo.
Aliás, é uma característica engraçada, mas os Japoneses desconhecem muitas vezes a influência que tem no resto no mundo, desde a animação, videojogos, gastronomia, música e até a moda, e este parece surpreendido por conhecermos tanto. Despedimo-nos dele com uma nota recorrente, que nos possamos voltar a ver em breve, numa futura digressão idealmente ainda maior no seu país.
Voltamos a um ambiente urbano em Hamamatsu e começo a receber notícias preocupantes. Além de que o governo começa a tomar medidas mais impositivas, o que se começa a sentir na venda de bilhetes, o agente europeu notifica-me de que existem concertos da nossa próxima digressão a ser cancelados, por causa da pandemia. Esta seria nossa maior digressão de sempre, mais do que um mês em concertos por toda a Europa, em promoção de “King Ruiner”. Sinto que não será o fim das más notícias, pelo que me chega de outras notas do resto do mundo.
Tentamos ignorar estes factos momentaneamente e ser o mais profissionais possíveis. Afinal, temos um concerto por cumprir. E este corre em boas condições, apesar de como nos tinha sido indicado, sentir-se menos pessoas presentes, que simultaneamente são as que nos querem mesmo ver antes de partirmos. Vêm ao concerto e parecem conhecer já várias canções do novo álbum.
E assim chega o último dia da digressão, uma data pela qual tinha esperado. Além de acontecer em Tóquio, será num clube no centro de Shibuya, uma das cidades com mais movimento em todo o mundo. Alguns sentimentos intensificam-se, algo normal no fim de uma digressão, e por incrível que pareça começa a nevar durante a parte da tarde, eventualmente transformando-se numa ligeira chuva que não deixa de ter algo mágico. Tal não impede a enorme circulação de pessoas (mais tarde dizem-nos que seria ainda maior não fosse notícias de um pendente estado de emergência) e aproveitamos para conhecer um pouco da cidade mas, como sempre, sem grande tempo, pois temos que seguir para o soundcheck.
A sala é perfeita, com um sistema de monitorização perfeito, o que é sempre importante. Há mais do que uma pessoa em palco a ajudar, o técnico é muito competente e o PA ideal para música electrónica como a nossa, com várias frequências quentes e graves. Não podiamos ter pedido melhor, conseguimos um dos melhores concertos da digressão e penso que fechámo da melhor forma.
Talvez sentindo tempos de mudança pelas notícias, o ambiente de pessoas felizes por estar a sair à noite e ouvir nova música o vivo é notável e ficamos em conversa com várias pessoas, desde bandas a público interessado em comprar tanto o novo álbum como edições anteriores. Ficamos assim até ao fecho da sala, que no Japão, ao contrário de Portugal, nunca é muito tarde e permite ainda usufruir de uma parte da noite.
またね
Trabalho muito, mas no fim de tudo também tendo a festejar à altura. Depois de deixarmos o material no hotel, já preparado para o dia seguinte de viagem, a Shannon partilha o seu enorme cansaço, o que só demonstra a sua entrega em toda a digressão, e comentamos a hipótese de mudar o voo para o dia seguinte, ficando finalmente com um dia off, normal em digressões, mas que nesta não aconteceu pois estar no Japão é um tempo bem caro.
Isto porque recebo uma mensagem da companhia aérea que indica que tal pode acontecer por um limite no número de voos por causa da pandemia. Ela fica a descansar e fica combinado que voltaremos a falar sobre esta questão no dia seguinte. Além disso, recebo mais notícias sobre cancelamento de datas e em vez de ficar preso em pensamentos negativos aceito o convite de um pequeno grupo que conheci no concerto para jantar fora.
Em Tóquio é possível encontrar um restaurante aberto às altas horas da noite e aproveito para experimentar alguns pratos, sempre acompanhado de vários tipos de saqué que faço questão de experimentar e reter as diversas diferenças com o nossos hábitos. A noite prolonga-se e volto ao hotel bastante tarde. No entanto, vejo-me na necessidade de responder a alguns e-mails enquanto espero que a Shannon acorde. E todos eles referem consequências da pandemia inclusive o cancelamento de todos os nossos concertos e a paragem da música ao vivo nos próximos meses.
Voltamos a falar e decidimos que o ideal, tendo em conta as notícias cada vez mais alarmantes relativo a viagens que nos chegam, seria partir para casa, mesmo que para um auto-isolamento, que sempre seria mais fácil gerir em Portugal. De notar que, se tivéssemos partido no dia seguinte, muito provavelmente teríamos ficados retidos ou no Japão ou em Espanha, onde mudaríamos de voo e fechariam os aeroportos.
Passados dias de voltarmos, recebo notícias que um jornalista do Mainichi Shinbun (um dos maiores jornais do Japão) esteve presente no concerto e destacou a nossa actuação. Para um pequeno grupo do Porto, por muitos sucessos que já tenhamos tido, foi algo que recebemos com um surpresa enorme e que complementa uma experiência que esperamos repetir em breve. Afinal uma relação com o Japão, uma vez conseguida, espera-se que se possa manter por muitos e longos anos, algo que Portugal já fez em outros tempos, por interesses diferentes, e agora vejo a cultura como a forma perfeita de estabelecermos essa fascinante ligação.