Num pico de forma espantoso, Lenny Kravitz regressou a Portugal para mais um sermão musical repleto de boas vibrações e de muito groove. Consigo trouxe a novidade “Blue Electric Light” (2024), que imprimiu frescura num set recheado de clássicos intemporais.
As rastas dos 90s, a icónica silhueta de modelo, a Gibson Flying V de assinatura a tiracolo e um físico invejável capaz de, no panorama do rock, apenas fazer frente ao também sexagenário Phil Collen, guitarrista dos Def Leppard, são imagens de marca que distinguem Lenny Kravitz a milhas de distância. Esta foi a checklist que Lenny seguiu à risca aquando da sua entrada no palco da MEO Arena.
Antes disso tivemos direito a uma pequena apresentação de Amaura, a artista portuguesa que teve as honras de aquecer o público. Escolhida propositadamente para esta data, Amaura soube agarrar a oportunidade ao dar-nos um cheirinho do seu R&B carregadinho de soul, hip-hop e também algum funaná. A cantora apresentou-nos temas dos seus dois álbuns de estúdio “EmContraste” (2019) e “Subespécie” (2023) e colocou a MEO Arena a gingar ao som de composições bastante groovy.
Com o passar dos minutos que separaram a atuação de Amaura da de Lenny Kravitz gerou-se um clima de muita antecipação, algo que se acentuou com um ligeiro atraso por parte do artista principal. Não recebemos informação relativamente a uma possível lotação esgotada da MEO Arena, mas certamente que os números não andaram longe disso. Já com as luzes apagadas, um coro de vozes levantou-se para receber a lenda do rock, o pastor ou o sex symbol de várias gerações, escolham vocês a definição que melhor encaixa, visto que todas definem a persona de Lenny Kravitz.
Após uma explosão com grande aparato pirotécnico eis que o deus do rock apareceu na dianteira com a sua Flying V de assinatura, modelo que a Gibson lançou em 2002.
Surgido numa plataforma elevatória, Lenny atirou-se a “Brig It On”. Após uma explosão com grande aparato pirotécnico eis que o deus do rock apareceu na dianteira com a sua Flying V de assinatura, modelo que a Gibson lançou em 2002. Com o som nos trinques foi possível confirmar que a voz de Lenny não sofreu qualquer alteração ao longo das décadas, continuando robusta e com o caráter de sempre. Algo facilmente explicável com o seu afastamento dos excessos e com o abraçar de uma dieta vegana e de uma rotina regrada de exercício físico. “Minister of Rock ‘n Roll” fez a ponte para o primeiro tema de “Blue Electric Light” (2024). “TK421” partilha a sexyness de “Kiss”, tema de Prince, tornando-se impossível não balançar o corpo ao som de algo auditivamente tão pegajoso. Por instantes, Hoonch “The Wolf” Choi largou o baixo para se dedicar ao Moog, já Lenny ocupou o lugar do primeiro ao dedilhar, com muito funk nas articulações dos dedos, não um, mas dois baixos, primeiro um Music Man Stingray e depois um Fender Jazz Bass.
O primeiro clássico da noite surgiu logo de seguida. “Always On The Run”, essa malha funk monumental cujo riff é da autoria de um senhor chamado Saul Hudson, aka Slash, mostrou que o funk ainda move multidões e Lenny é um dos últimos grandes representantes desse género que proliferou na década de 70. Para este tema, o músico sacou de uma Gibson Les Paul Standard Walnut de 1968, uma de muitas Gibson vintage que desfilaram nos seus braços. Uma Goldtop Conversion de 1953, uma Flying V Custom, uma Flying V Vibrola e uma ES-335 Maestro Vibrola foram os modelos da Gibson que passaram pelas mão do roqueiro, algo que nos leva a questionar para quando um episódio da série “The Collection” com Lenny Kravitz? Fica a dica Mark Agnesi…
Após sacar cinco malhas de rajada, Lenny acalmou os ânimos e fitou exaustivamente a plateia antes de proferir as primeiras palavras no seu tom de voz pausado e relaxado. «Boa noite! (…) Estamos aqui todos. Que bênção estar vivo. Todos os dias acordo e agradeço a Deus por mais um dia de vida.» O pequeno discurso espiritual, onde Lenny também aproveitou para tirar o casaco para gáudio das fãs, abriu portas para “Stillness of Heart”, a primeira balada romântica da noite, que motivou várias danças de casais. Já a mensagem de esperança de “Believe” trouxe Lenny num momento acústico a dedilhar uma Martin e um dos solos de maior protagonismo de Craig Ross, o braço direito de Lenny há mais de 30 anos. Perante a imponência de Kravitz, pode passar despercebido, mas o que é certo é que Ross carrega nas costas o estatuto de um dos melhores músicos de sessão de todos os tempos, e nem vamos entrar pela postura de rockstar que emana sempre que pisa um palco. Como se costuma dizer, Ross é o real deal e, sem dúvida, uma das melhores pessoas que a música trouxe até Lenny.
Perante a imponência de Kravitz, pode passar despercebido, mas o que é certo é que Ross carrega nas costas o estatuto de um dos melhores músicos de sessão de todos os tempos, e nem vamos entrar pela postura de rockstar que emana sempre que pisa um palco.
“Honey” e “Paralyzed” voltaram a trazer a tensão sexual para cima do palco. Kravitz sabe como provocar um público maioritariamente feminino e o novo álbum está carregadinho destas malhas que estimulam todos os sentidos. Numa setlist recheada de momentos altos “Low” e “Chamber” passaram algo lado. Não representaram momentos de desagradado, mas sem dúvida que separaram-se bem da reta final de clássicos que se avizinhava. Já com Lenny ao piano, eis que a MEO Arena se iluminou para uma versão assombrosa de “I’ll Be Waiting”. Comprovando a sua fama de homem dos sete instrumentos, Lenny demonstrou toda a sua fluência nas teclas. O músico tirou ainda alguns minutos para apresentar o resto da banda que o acompanha. Além de Craig Ross e “The Wolf”, Lenny também apresentou os backing vocalists Blac Rabbit, o trio de metais composto pelos saxofonistas Harold Todd e Michael Sherman e o trompetista Cameron Johnson, o teclista George Laks e, a mais ovacionada, a talentosa baterista Jas Kayser, que rendeu a colaboradora de longa data Cindy Blackman. Já “It Ain’t Over ‘Til It’s Over” trouxe a herança sonora de Marvin Gaye, esse rei da música afrodisíaca, para cima do palco. Enquanto “Again” pulverizou os fãs portugueses com a derradeira balada romântica da noite.
A cover de “American Woman” surgiu bem encaixadinha entre os maiores clássicos de Lenny, talvez numa prova de que este tema já é mais de Kravitz do que propiamente dos The Guess Who, banda que em 1969 compôs a malha a partir de uma jam de improviso. De qualquer das formas, o público não se acanhou e gingou ao ritmo do icónico riff de guitarra. E por falar em riffs de guitarra icónicos, o que se seguiu foi uma autêntica rajada de power chords, linhas melódicas e refrões pegajosos, primeiro com o hino “Fly Away” e de seguida com a música de assinatura de Lenny “Are You Gonna Go My Way”. Após uma ruidosa espera por um encore, a banda regressou a palco para uma última palavra de amor e de esperança na forma de “Let Love Rule”. Kravitz começou primeiro por dar o seu sermão em palco com uma Fender California Vintage Palomino, e depois, já com o público a entoar o refrão, numa espécie de mantra, Lenny misturou-se com os seus fieis saudando-os e autografando tudo o que lhe apareceu à frente para assinar.
Se este momento glorioso tivesse acontecido simplesmente pelo ímpeto de Lenny querer ser adorado de perto pelos seus fãs já seria válido, mas por detrás de todo este desfecho houve uma carga simbólica gigante, a de um apelo à paz, à união e à partilha do bem. Naquele preciso momento cerca 20 000 pessoas foram uno e é esse o poder transcendental que Lenny Kravitz tem sobre todos aqueles que o seguem.