As Camadas de Noiserv no Tivoli
2020-11-13, Teatro Tivoli BBVA, LisboaDepois de vários concertos por esse Portugal a fora, a promover o seu novo álbum, chegou a vez do Tivoli, em Lisboa, receber Noiserv para apresentar, “Uma Palavra Começada por N”.
Parou. O Noiserv está em palco e esqueçamos por momentos a vida lá fora e fingimos que estamos em 2026. Neste texto, nenhuma das palavras começadas por “C” são permitidas. Estamos fartos delas. A cultura em Portugal está na m*rda (desculpem, mas não nos gostamos de floreados) e qualquer iniciativa deve ou devia ser apoiada por todos, por isso assistimos a este concerto como se fosse o último antes do apocalipse, e aproveitámos cada som que surgiu da parafernália de liliputianos dispositivos musicais de Noiserv.
O Tivoli encontrava-se composto e reforçamos o mote #CulturaÉSegura. Cada participante deste ritual “noiserviano” tinha a seu lado um amigo imaginário e nenhuma das normas sanitárias foi esquecida. Provavelmente, em Lisboa não poderia haver melhor casa para receber as camadas sonoras que constituem a música deste singular artista nacional. A acústica do Tivoli apresenta-se perfeita para ouvirmos cada um dos sons que iam saindo daquele cubo mágico luminoso, onde o rei é David Santos.
Rei do múltiplos instrumentos, oferece-nos uma viagem em loops por toda a sua discografia, recorrendo à sua multidisciplinaridade na guitarra, na concertina em “Palco do Tempo”, nas teclas e controladores MIDI, no xilofone ou de megafone em riste… Não faltaram as velhinhas (mas sempre bem vindas) “This Is Maybe the Place Where Trains Are Going to Sleep at Night”, “Don’t Say Hi If You Don’t Have Time for a Nice Goodbye”, “Dezoito”, “I Was Trying to Sleep When Everybody Woke Up” ou “Mr. Carousel”.
Provavelmente, em Lisboa não poderia haver melhor casa para receber as camadas sonoras que constituem a música deste singular artista nacional.
Como no Cubo de Rubik, por vezes tem que se recuar e rodar novamente o mecanismo, para acertar as cores perfeitamente. Noiserv é perfeccionista e, nessa rotação de tantas faces coloridas, por uma ou outra vez, parou, assumiu o “prego” e recomeçou. Seria necessário? Provavelmente não. Como o próprio dizia, «podia ter deixado passar, ninguém percebeu», mas o rei manda e são estes pequenos pormenores, este cubo mágico, que marcam esta noite tão especial e que todos queremos que seja perfeita. E foi.
David Santos é um dos músicos mais criativos ou pelo menos mais distintos do panorama alternativo da música contemporânea portuguesa e provavelmente uma das vozes masculinas mais quentes. Ao vivo, esse instrumento, a voz e timbre, é um dos pontos fortes de Noiserv. Com “Uma Palavra Começada por N”, Noiserv volta a trazer-nos um álbum recheado de boas canções, agora em português, e ao vivo apresentou-nos “Eram 27 Metros de Salto”, “Sem Tempo”, “Por Arrasto”, Sempre Rente ao Chão”, “Neutro”, ou dos momentos mais belíssimos da noite, a oferta da versão acústica de “Parou”.
Sem Tempo. “Sem Tempo”, diziam-nos os mails de David Santos, inspira-se nos diários de Eduardo Lourenço e surge da recriação de uma das música que Noiserv compôs em 2018 para o documentário “O Labirinto da Saudade” de Miguel Gonçalves Mendes, sobre a vida e obra do filósofo português. Regressando aí ao piano como instrumento primordial, Noiserv deixa no ar «que um dia ninguém dirá que eu também morri, aqui» reflectindo sobre tudo aquilo que somos e que um dia se torna vazio e esquecido.
No final do concerto, queríamos permanecer ali, lembrar-nos de como somos e não daquilo em que nos estamos a tornar, fechados dentro destes cubos que são as casas, sem contacto, sem desenvolver camadas, sem cores, sem música… Ainda houve quem sugeri-se ficar até às 5h. Mas…