Deep Purple, O Abrasivo Fogo de uma Magnífica Fénix
2022-11-06, Campo Pequeno, LisboaA ideia original era apresentar “Whoosh!”, mas no final celebrou-se o meio século do colossal álbum “Machine Head”. As agruras da vida tornaram a abater-se sobre as lendas britânicas, quando Steve Morse foi forçado a afastar-se das digressões. Assim, com Simon McBride, o Mark IX dos Deep Purple estreou-se em Lisboa num fogoso e apoteótico concerto.
Depois de terem editado “Whoosh!”, os Deep Purple arrancaram finalmente em 2022 com a digressão, adiada pela pandemia, de apresentação ao vivo do 21º álbum de estúdio. O disco, que contou com a produção de Bob Ezrin (KISS, Pink Floyd, Alice Cooper, entre outras estrelas internacionais) é considerado um dos álbuns mais versáteis da história das lendas britânicas. O sucessor de “infinite” (2017) e “Now What?!” (2013) segue as pisadas dos trabalhos anteriores a garantir entradas diretas nos TOPs, tendo inclusive quebrado recordes acumulados por algumas das maiores bandas rock dos últimos 50 anos.
A banda soma mais de 100 milhões de álbuns vendidos, com arenas esgotadas ao longo de décadas pelos quatro cantos do mundo. Em 2008 receberam o prémio Legend Award nos World Music Awards e foram ainda, em 2016, incluídos no Rock and Roll Hall of Fame. Fundados em 1968, os Deep Purple foram pioneiros do hard rock e são há muito considerados uma das bandas mais influentes de todos os tempos. A sua longevidade mantém-se intacta com um vasto legado de álbuns que são hoje considerados verdadeiros clássicos (“In Rock”, “Machine Head” e “Burn”). O seu vasto e incrível trabalho garantiu-lhes uma das mais bem sucedidas carreiras da história do rock que tornou a ser celebrada e vivenciada de forma apoteótica em Lisboa.
Aqui é preciso abrir um parênteses…
Há umas semanas atrás, vendo-me num Campo Pequeno muito despido de público para ver os Black Crowes, decidi escrever aqui na AS, que o rock estava moribundo em Portugal. Desta feita, os portugueses trataram de me fazer passar por um perfeito imbecil e esgotaram a bilheteira deste concerto. Ter uma banda lendária no cartaz ajuda, mas os Deep Purple têm tocado sucessivamente no nosso país, de modo que não deixou de ser algo surpreendente ver tamanha multidão ali reunida. Mea culpa. O bom e velho rock pode estar velho, passe a redundância, mas como diria Mark Twain, as notícias sobre a sua morte são exageradas.
EM CASA
Em 2021, numa entrevista à estação de rádio Radio Rock 106.6, Ian Gillan, explicava porque se apaixonou por Portugal, onde vive a tempo parcial há mais de uma década. «Bem, tenho alguns lugares no meu coração a que chamo as minhas casas espirituais. E tudo isso começou com Beirute, no Líbano, nos anos 60. E desde então, incluí o Japão, Polónia, Itália, Brasil e com certeza, Portugal». O músico contou que quando era mais novo, ele e a sua família adoravam as Caraíbas, iam lá regularmente – duas ou três vezes por ano. «A minha mulher e a minha filha costumavam andar de avião e costumávamos fazer mergulho e divertíamos-nos imenso. Pensámos comprar lá um espaço, mas é um longo caminho para família e amigos irem passar um fim-de-semana. Assim, começámos a procurar em Espanha e depois fomos a Portugal. Um amigo meu emprestou-me uma casa lá e depois comecei a alugar e apaixonei-me pelo lugar. É muito semelhante a casa. Os portugueses têm um sentido de humor muito parecido com o dos ingleses; gostam muito de rir. E a cerveja é muito boa. O pão é muito bom. Posso comprar um pão por 70, 80 cêntimos. Posso comprar uma cerveja por 80 cêntimos. E em Inglaterra, uma cerveja são cinco libras, seis euros por uma cerveja. Foi uma decisão fácil. E, claro, depois há o tempo; o tempo também é bastante bom. Resumindo, há cerca de 15 anos atrás, deixei de alugar e comprei uma casa em Portugal. Assim, passo metade do meu tempo livre em Portugal e metade do meu tempo livre na casa da minha família em Inglaterra».
Em Lisboa, os Deep Purple mostraram o seu novo guitarrista e Simon McBride revelou-se um executante portentoso, destacando-se o seu pungente vibrato e o vigor dinâmico dos seus solos, com alguns licks (atrevemo-nos a dizer) à Satriani.
Foi no Algarve que Gillan conheceu e travou amizade com Umberto Sulpasso. O frenético vocalista dos UROCK, que abriram o concerto no Campo Pequeno, um italiano que também possui residência no Algarve. Fez questão de, ao longo dos 40 minutos do seu concerto, comunicar num alegremente macarrónico italo-português com uma sala que enchia a cada minuto, a cada canção. Mas toda esta cumplicidade não se fica por aqui. Alguns dos membros da banda italiana são donos de um tasco em Aveiro e, na incerteza de que o seu guitarrista Cristian Murasecchi conseguisse viajar de Roma para ensaiar com a banda, o Jorge Loura – um malandro que adoramos – foi posto de prevenção para ocupar o seu lugar. Isso acabou por não suceder. Com malhas com produção de Alan Parsons, como a balada “The Flight” que tocaram no Campo Pequeno, e de Jack Endino, o lugar do Nuno Calado – amigo íntimo de Endino e outro intratável malandro – estava cativo na plateia.
Enfim, os UROCK são um pessoal bem fixe, Umberto possui um entusiasmo contagiante e a alegria da banda em estar a abrir para os gigantes Deep Purple era extravasante. Todavia, o seu rock é pouco cativante. Pouco sólido estruturalmente, com demasiadas coisas a acontecerem (ora estão a roçar o pós-grunge, ora estão à beira do perigoso território pop dos Coldplay), sem grande força nos riffs, sem poder rítmico e, ainda que Umberto tenha feito questão de dizer que Eros Ramazzotti é brega, as suas canções semi-acústicas acabaram por não soar tão distantes daquilo que faz o icónico cantor romântico. Dito isto, o público apreciou imenso o concerto dos UROCK e colaborou bastante com a banda. Quando o concerto dos italianos terminou a plateia e as bancadas do Campo Pequeno estavam lotadas.
MACHINE HEAD
Estão a imaginar o efeito de “Highway Star” num Campo Pequeno ao barrote? O rufar de tarolas de Ian Paice e o galopante baixo de Roger Glover, depois somados com os teclados e a guitarra, foram como atirar gasolina para o fogo! Logo de seguida, Paice explode os timbalões e entra “Pictures Of Home”. Os adiamentos da digressão impostos pela pandemia tornaram “Machine Head” no centro do concerto. Afinal, em 2022, essa tarefa hercúlea do Mark II [Ritchie Blackmore, Jon Lord, Ian Paice, Ian Gillan e Roger Glover] dos Deep Purple, que procura fazer soar todo o seu virtuosismo e talento contra todas as partidas do destino, celebra 50 anos!
É o álbum no qual a banda se deixou de vez de bizarrias, fosse a busca de canções na pop, das extravagantes colaborações com a London Philharmonic Orchestra ou do experimentalismo de “Fireball”. Assim, tornou-se num dos álbuns mais importantes da história do rock, cheio de malhões, de riffs e de atitude, com um carácter incomparável. “Machine Head” é a suma da banda. Perfeito. A explosividade e peso do som tornaram-no num marco a nível estético, estrutural e de produção. É por esses factores e por este álbum que os Deep Purple passaram a ser colocados, em várias discussões, junto dos Black Sabbath e Led Zeppelin como um dos pilares da Santíssima Trindade originária do hard rock e heavy metal.
É o álbum em que Jon Lord (que correu os seus órgãos através de um stack Marshall) e Ritchie Blackmore melhor se coadunam, em que os píncaros de forma dos dois músicos a nível de execução estavam similarmente no auge em conjunto com a fúria criativa e pertinência melódica. Esse é um factor raro em qualquer banda, em qualquer momento da história da música, que os Deep Purple teimam em rebater. No Campo Pequeno, Don Airey e Simon McBride cumprem essas dinâmicas com vigor notável.
MARK IX
Os Deep Purple arrancaram uma nova digressão mundial no passado dia 22 de Maio, na Menora Mivtachim Arena, em Tel Aviv, Israel. O início de mais uma tour das lendas britânicas dificilmente seria uma notícia de grande destaque, tal a quantidade de vezes que sucede. Desta feita as coisas são diferentes. Trata-se da estreia com o guitarrista Simon McBride, assinalando a era do Mark IX. Em Março passado, a banda anunciou que motivos de ordem pessoal forçaram o seu guitarrista Steve Morse a um hiato na sua carreira. A esposa do shredder tem um problema de saúde bastante delicado e o músico decidiu estar perto dela, acabando mesmo por anunciar, posteriormente, que não regressaria à vida de digressões e abandonaria os Deep Purple, ele que estava na banda desde 1994, quando entrou para compensar a saída de Ritchie Blackmore. Na ocasião, foi então anunciado o substituto: Simon McBride.
O guitarrista já andou, noutras ocasiões, em digressão com Ian Gillan e também com Don Airey, o teclista que ocupou o lugar do eterno Jon Lord. Sobre a sua escolha, McBride referiu: «Sinto-me extremamente honrado por me terem proposto ocupar o lugar do Steve e tocar com uma banda rock tão icónica como os Deep Purple. São excelentes músicos e excelentes pessoas… Estou entusiasmado por ir para a estrada e tocar estas canções tão icónicas em palco, ao lado de tais lendas. Os meus pensamentos permanecem com o Steve e Janine e a sua família».
É o velho ditado que os Queen musicaram. The show must go on. Nesse sentido, McBride deixou que a tremenda reputação da banda seja alvo de qualquer dano. Em Lisboa, mostrou-se um executante portentoso, destacando-se o seu pungente vibrato e o vigor dinâmico dos seus solos, com alguns licks (atrevemo-nos a dizer) à Satriani. Entrando em comparações, talvez Morse tenha uma mão mais pesada e um timbre mais espesso, enquanto McBride soa mais aguçado. Atrás de si estão três stacks de colunas Engl, ligadas a cabeços Engl Powerball. É o mesmo rig que Morse usava. Todavia, McBride há muito usa guitarras PRS e (atenção que isto é totalmente subjectivo) os modelos Fiore e 408 semi-hollow com que tocou praticamente todo o concerto soaram demasiado cirúrgicas. Os americanos usam aquele ditado: «Brought a knife to a gun fight». McBride trouxe bisturis.
É emocionante ver como Ian Gillan consegue repelir a inexorabilidade. O savoir-faire com que protege a voz e não se expõe aos momentos em que já não vai às notas mais altas.
De qualquer forma, veio insuflar nova vida nos britânicos. Mesmo contando a idade da banda e mesmo contando situações infelizes como o AIT sofrido por Ian Paice em 2016, os Deep Purple apenas se ressentem (em concerto) em alguma capacidade de fúria, que ostentaram durante tantos anos e que agora deu lugar a ainda maior sofisticação na execução ao vivo. Um traço que, de resto, tem vindo a ser vincado desde 2002 e, então, da estreia do Mark VIII. McBride tornou a renovar a velocidade, algo que Morse tinha vindo a abrandar.
O mais recente álbum é evocado com “No Need To Shout” e “Nothing At All”. Enquanto McBride e Airey shreddam os fraseados barrocos do último, vamo-nos focando em Gillan. É emocionante ver como consegue repelir a inexorabilidade. O savoir-faire com que protege a voz e não se expõe aos momentos em que já não vai às notas mais altas. Algo que ainda consegue, mas preserva para os momentos de maior intensidade no concerto, como “Lazy” que, como dizia Yngwie Malmsteen, soa como um arraso bíblico. Antes e depois desse estouro, as coisas foram mais calmas. Primeiro escutou-se o solo de McBride que, como Morse fazia, introduziu “Uncommon Man” – a homenagem ao saudoso Jon Lord. Depois chegou a clássica balada “When A Man Cries” (mais uma do álbum cinquentenário) e depois “Anya”, do último álbum do Mark II (“The Battle Rages On…”, 1993).
APOTEOSE
Os clássicos sucediam-se e a plateia troava as melodias com os músicos. Assim, chegou solo de teclado de Don Airey. Com o emparelhamento de um Hammond A100 e um MOOG Voyager, começou por evocar a sua melodia mais icónica, a introdução de “Mr. Crowley”, e passando por vibrante pianada (com um Kurzweil PC3K8), ofereceu-nos um truque já habitual, uma rendição de “Cheira a Lisboa”, encerrada, entre uma ovação ensurdecedora, pela melodia principal de “Coimbra”. Talvez tenha sido a sua mais sólida execução destes brindes sónicos que Airey já nos oferece, pelo menos, desde o concerto no Coliseu, em 2010. Se não estiveram no concerto, só podem tentar imaginar a euforia que se instalou entre o público.
E depois veio o peso avassalador. “Perfect Strangers” e o seu abrasivo riff, autoria de Blackmore – nas palavras de Steve Morse, «os acordes com uma confiança plena, quase arrogante, tocados de forma simples e deixados a soar, e depois aquela parte sincopada pesada». Estouro! “Space Truckin’” a soar super lenta e demolidora e depois, claro, “Smoke On The Water”. Nunca cansa ouvi-la ao vivo. Ainda mais desta feita, afinal McBride tocou-a com um vigor renovado. Imaginem que tinham sido vocês os escolhidos para entrar para os Deep Purple e se não tocariam o riff mais famoso de sempre como se tivesse sido inventado por vós. O tanas que não tocavam!
Com o Campo Pequeno em polvorosa, chegou o encore. Como sempre, com “Hush” e “Black Night” a ressoarem entre os coros de aclamação triunfal com que os portugueses homenagearam os Deep Purple. Depois do concerto de 2017, com um alinhamento menos impactante e alguma distância física entre o palco e o público, desta vez foi tudo bastante mais caloroso. Nunca se sabe qual será o último concerto que veremos dos Deep Purple, mas avaliando como, tal como uma fénix, renascem vezes sem conta das cinzas e se fazem fogo arrasador, o mundo vai ficar bem mais vazio quando esta criatura mítica desaparecer…
SETLIST
- Highway Star
Pictures of Home
No Need to Shout
Nothing at All
Uncommon Man
Lazy
When a Blind Man Cries
Anya
Perfect Strangers
Space Truckin’
Smoke on the Water
Hush
Black Night