Ennio Morricone, A Banda Sonora da Vida
2019-05-06, Altice Arena, LisboaElegantíssimo concerto de retrospectiva da carreira de Ennio Morricone, um dos maiores compositores de sempre. Dulce Pontes foi sublime!
Reza o ditado que a antiguidade é um posto, que toda a deferência que deve ser prestada a quem já calcorreou um maior número de milhas no trilho da vida. Um aforismo que, como tanta coisa que vem da chamada sabedoria popular, pode facilmente afundar-se sob o seu próprio peso. Porque, afinal, se a saúde e a sorte o permitirem, a estrada da vida foi e há-de ser igualmente percorrida pelo génio e pelo inapto, pelo virtuoso e pelo incompetente, pelo decente e pelo pulha.
É tentador entrar numa sala de concertos sabendo que no palco vai estar alguém que já ocupa um lugar no imaginário musical há tantas décadas, cujos temas já eram assobiados pelos nossos pais e que serão “samplados” pelos nossos filhos, que já não é sequer bem uma pessoa real, mas um ícone num sentido bizantino do termo. É tentador assumir a reverência a priori e venerar este Papa que transporta Roma consigo.
A grande questão aqui (e a setlist do concerto confirma isso) é que, perante um corpo de música tão eclético, tão fortemente relevante na sua continuidade de décadas, a reverência não só é justificada como, de certa forma, se impõem de forma natural.
IL BUONO
Justamente porque Ennio Morricone já cá anda há muito tempo a dar-nos música, é fácil instalar-se uma espécie de amnésia parcial do quanto o seu repertório permeia tanta da cidade musical que foi erigida no pós Segunda Grande Guerra. Encontramo-lo nas grandes avenidas, sim, mas igualmente em pequenas ruas e vielas. Viramos numa esquina, entramos num beco, e lá está ele, às vezes onde menos se espera. De forma directa ou reestruturado. Morricone é pilhado como poucos e, se como dizem, a imitação é forma mais sincera de homenagem, o Maestro já terá uma pequena fortuna em encómios não assumidos.
E o concerto que trouxe o Maestro até à Altice Arena vem com o peso de “última volta à pista”. Uma vez mais: o cenário de prémio carreira pode criar o efeito dos nossos ouvidos adoçarem o que estamos a ouvir, de se entrar no auditório para riscar mais um item de coisas a fazer na vida: «Vi o Morricone ao vivo e aqui está o Instagram que prova isso, para semana bungee jumping no Grande Canyon»… E isso seria a pior coisa a fazer perante esta música. Um desprestígio para ele, um autor que nunca teve receio de arriscar e inovar, que nunca foi um clássico (excepto quando lhe apeteceu), e para nós, que temos o direito de ouvir estas peças de forma fresca, como se fosse a primeira vez.
Morricone veio acompanhado da sua troupe habitual, a orquestra Roma Sinfonietta. A massa gravitacional de uma orquestra sinfónica completa com coros e percussões faz-se sentir, inclusive, antes de uma única nota ser entoada: a sua demorada entrada em palco é como assistir à chegada de uma expedição alienígena à terra. Morricone entra devagar, com uma aura de tranquilidade que lhe tolhe os movimentos mais do que a idade: é como se toda a exuberância que existe em si fosse transposta para a pauta musical, deixando no corpo apenas o compositor sóbrio que executa o trabalho diário. Ou talvez Morricone, por ter quase um século de vida e quase isso de carreira, pertença a uma velha escola com pouco lugar para narcisismos de divo.
IL BRUTTO
O concerto dividiu-se por secções temáticas, talvez a única forma de poder reunir, numa única prestação, música dos mais diferentes géneros e épocas. Morricone escreveu ao longo de décadas para cinema e televisão, para produções europeias e americanas, para blockbusters de Hollywood e filmes de nicho. O agrupamento em grupos de 3 ou 4 composições com semelhanças temáticas e/ou musicais deu um formato de sinfonia ao que de outra maneira seria um potpourri caótico de temas.
A primeira secção, intitulada epopeia histórica, compreende o clássico “The Strength of the Righteous”, de “The Untouchables”, e dois temas do quase completamente esquecido “The Red Tent”. A colaboração de Morricone com DePalma foi, de certa forma, uma actualização da música do filme noir dos anos 30, com todo o seu imaginário de gangsters, detectives duros como os cornos e mulheres fatais: a toada compassada, de tensão e perseguição é quase John Barry, intervalando com aquela harmónica à Leone.
“The Dreams Go On” e “Others Who Will Follow Us” são o exemplo (um de muitos na sua carreira) de Morricone a compor para filmes que acabam por cair no esquecimento excepto pela sua música. Muitas vezes, demasiadas vezes, Morricone foi supremamente melhor do que o filme à sua frente, ou pura e simplesmente compôs para um tipo de universo cinematográfico que, independentemente da sua qualidade, não resistiu à passagem do tempo e desapareceu do imaginário colectivo. Nisso um John Williams ou Hans Zimmer beneficiam de ter os seus temas associados a cenas e personagens mais iconográficas. O que é pena, pois estes temas mereciam mais memória, especialmente “Others Will Follow Us” que, na sua experimentação com texturas para recriar as atmosferas gélidas do filme, soa como um precursor daquilo que Marcus Fjellstrom criou para “The Terror”, outro conto sobre expedições polares destinadas ao infortúnio.
Curiosamente, o que parece sobretudo unificar esta primeira secção é a presença do avatar escocês Sean Connery em ambos os filmes. Talvez que a lembrança de John Barry não tenha sido por acaso.
IL CATTIVO
Novecento et al é a secção mais incoerente, saltando épocas e géneros sem haver propriamente um fio distintivo. 1900 é uma das muitas colaborações com o cinema de Giuseppe Tornatore, quiçá o cineasta para quem Morricone mais compôs, e é a versão orquestral do tema título que o compositor nos oferece, embora nesta instância particular teria sido interessante escutar a versão só de piano que Tim Roth interpreta no filme. A formação inicial de Ennio foi como trompetista e o tema título de “Ata-me” flutua sobretudo nos sopros meio jazzísticos, um Bernard Herrmann mais melancólico.
Melancolia que casa bem com “Ostinato Ricercare per un’Immagine”, o mais belo e gélido tema do concerto, todo ele violinos e violoncelos em deriva agridoce quando, de súbito, entram sopros e bateria upbeat, grupo de baile, quase kitsch, transformando completamente a natureza do que estamos a ouvir sem sair das linhas melódicas da composição: é uma mudança invulgar, muito Morricone. “Nostromo” marca a entrada em palco da soprano Susanna Ricacci e o prenúncio da secção mais aguardada.
A mais bela e terrível das harmónicas, o mais distintivo som de Morricone, anuncia a chegada de pó, vingança e areia, como um mensageiro da morte. A colaboração de Morricone nos westerns de Sergio Leone é o melhor casamento de imagem e som da história do cinema: em muitos aspectos os filmes de Leone poderiam ser cinema mudo, com a música de Ennio a dar voz às personagens e ao seu mundo interior (reza a lenda que o compositor escreveu grande parte das bandas sonoras somente a partir do argumento e das indicações da textura emocional que Leone desejava, de modo a que aquando das filmagens a música já estivesse presente).
“The Man with the Harmonica” é agora tão improvável quanto sempre foi na época: som diagético da harmónica, guitarra pré metal, a harmonia coral, nada disto deveria resultar mas resulta. “The Good, the Bad and The Ugly” é, se alguma coisa, ainda mais improvável, com a sua emulação do uivo de coiote e crescendo épico. Também é o tema que mais beneficia da grande orquestra: torna-se mais cheio, sem nunca perder a sua idiossincrasia. “Ecstasy of Gold” é um portento e um bónus para quem o possa ter escutado com uma semana de diferença aqui e nos Metallica. Ficou a faltar “The Trio” para completar o êxtase Leonesco antes do intervalo.
DULCE
Na segunda parte, Ennio Morricone entra a matar com o seu tema mais tenso, o fabuloso “L’ Ultima Diligenzia di Red Rock”, a abertura de “The Hateful Eight” de Tarantino. Que aos 87, Morricone ainda tivesse isto dentro dele é algo extraordinário. Que aos 90 ele nos presenteie com este crescendo de ameaça sub-reptícia é um milagre. É desorientador ser no seguimento de algo que evoca Samuel L. Jackson e litrosas de sangue ver Dulce Pontes a chegar ao palco, mas também isso é parte do charme idiossincrático da música do italiano.
Esta é a secção de cinema social, à melhor tradição do grande neo realismo italiano, e começa com Dulce a dar a voz a “La Luz Prodigiosa”, tema título do filme que aborda a potencial sobrevivência de Frederico Lorca ao fuzilamento na Guerra Civil de Espanha. É toda uma secção dedicada aos temas que, mais do que nunca, precisam de ser postos em relevo nos dias de neo fascismo actuais, e que seja uma das pratas da casa a abrir e a fechar esta secção é a foice no topo do martelo para o público da Altice. Dulce canta “La Luz” com toda a alma andaluza que o tema merece, mas onde brilha verdadeiramente é em “Abolição”, o hino de “Quemada” de Gillo Pontecorvo, sobre uma revolta de escravos numa ilha portuguesa fictícia: este tema, nesta época, neste país, com esta cantora, é um daqueles momentos em que peças dispersas ao longo de décadas se conjugam para oferecer algo único e irrepetível.
Pelo meio ouve-se “The Battle of Algiers”, também de Gillo Pontecorvo (talvez o filme que melhor prenunciou toda a problemática do Médio Oriente no pós colonialismo), em ritmo marcial de guerra; “Here’s to You” de Sacco & Vanzetti, é um hino aos dois anarquistas ítalo-americanos que foram injustamente condenados à cadeira eléctrica no início do século XX, com Dulce Pontes a fazer a voz de Joan Baez e com “Brisa do Coração” de Sostiene Pereira a fazer plenamente a sua própria voz, pois toda a temática desta secção de luta social vem habitar também na nossa história e nesse improvável resistente fictício do Estado Novo que é Pereira; “The Working Class goes to Heaven” foi aquele dia em Morricone criou a música industrial, numa marcha anti-alienação e exploração, que surge aqui um pouco menos marcial e compassada que no original, sem perder a sua fúria de dignidade fabril; “Casualties of War”, um dos grandes temas de Ennio para o mais esquecido dos grandes filmes sobre o conflito do Vietname (não por acaso aquele que mais ênfase coloca nas verdadeiras vítimas do conflito) e onde o coro pôde realmente começar a brilhar.
PARADISO
E é com coro de vozes aquecidas que se transitou para “The Mission” de Roland Joffé. Se o trabalho de Morricone na “Trilogia dos Dólares” é o compositor no seu lado mais incoativo e original, “The Mission” é o seu lado mais belo. “Gabriel’s Oboe” introduz com suavidade a melodia dos Guarani, “The Falls” a sua queda e “On Earth as it is in Heaven” a sua eterna glória. A história de tudo e de todos em três temas. De bom grado se iria a um concerto de Morricone em que este tocasse “The Mission” na íntegra.
No primeiro encore, regressou-se a “Tornatore” e ao piano de “Cinema Paradiso” e faz sentido que a conclusão formal de um concerto onde passa tanto do cinema seja nesta grande homenagem ao mesmo, num tema que contém em si todos os outros que por aqui passaram. Os restantes encores com a repetição de “Ecstasy”, “Abolição” e “Luz Prodigiosa” são apenas a banda sonora para deixar a sala. Depois “Paradiso” e somos todos o Toto, na sala escura, a assistir ao último presente de Alfredo.