Quantcast
Flying Lotus, odisseia mental

Flying Lotus, odisseia mental

2017-06-08, NOS Primavera Sound 2017
Pedro Miranda
9
  • 9
  • 9
  • 8

O primeiro dia de NOS Primavera Sound revelou-se de algumas belas surpresas.

A satisfação dos primeiros momentos de retorno ao Parque da Cidade foi pontuada pelo bom humor e disposição de Samuel Úria, encarregado de abrir as hostes; a muito sentida falta de Grandaddy (entenda-se que por motivos mais que compreensíveis) viu-se suprida pela brilhante e carismática atuação dos irlandeses Arab Strap, e a relativa insuficiência de Run the Jewels compensada por uns Justice muito acima da média e a justificar a sua posição de cabeça-de-cartaz. Nenhuma, no entanto, tão recompensadora quanto a trazida por Flying Lotus que, sendo à cabeça um dos artistas mais cotados, ainda assim foi capaz de exceder expectativas.

ARAB STRAP @ NOS PRIMAVERA SOUND 2017
_ © Hugo Lima | www.hugolima.com | www.fb.me/hugolimaphotography

SAMUEL ÚRIA
_NOS PRIMAVERA SOUND 2017
_ © Hugo Lima | www.hugolima.com | www.fb.me/hugolimaphotography

Trocada por miúdos, a estratégia de Flying Lotus ao vivo assemelha-se muito a um ataque implacável aos sentidos. A sua música, constantemente complexa nas suas camadas e sub-camadas ecléticas e agitadas.

Até porque, por melhor que fosse a projecção que conjurássemos do concerto de FlyLo, nada nos prepararia para que viesse a ser, na verdade, bem mais que isso. Talvez uma “odisseia mental”, no sentido de viagem abstracta pelos meandros do som, da luz e da percepção, seja a melhor forma de descrever o espetáculo que presenciou o NOS Pimavera Sound, para todos os efeitos o mais criativo, ambicioso e desafiante do dia. Características que podem não ter caído tão bem nos ouvidos de alguns dos festivaleiros: admitidamente, entrar no mesmo comprimento de onda de Steven Ellison – e por isto entenda-se acompanhar a sua ginástica e abrangência psíquica – é tão exigente quanto intimidante. Uma experiência, em suma, difícil de ignorar, e mais ainda de esquecer.

Trocada por miúdos, a estratégia de Flying Lotus ao vivo assemelha-se muito a um ataque implacável aos sentidos. A sua música, constantemente complexa nas suas camadas e sub-camadas ecléticas e agitadas, funde uma base que passa essencialmente pelo hip-hop com toques (muito pouco subtis) de eletrónica e um ethos do jazz que vai buscar à ancestralidade (é sobrinho-neto de Alice Coltrane) – uma mistura que já parece estranha no papel e assume contornos verdadeiramente desconcertantes ao vivo. A isto, alia o complemento visual de dois painéis, um frontal e outro dorsal, sobre os quais projeta imagens, hologramas, padrões caleidoscópicos e formas verdadeiramente hipnotizantes, que elevam ao cubo as potencialidades de um som já de si inacreditavelmente surreal, a propósitos que são tão cerebrais em natureza quanto dançáveis em ritmo.

Mas é da transgressão de conceitos, da concatenação de universos infinitamente distantes que FlyLo constrói a sua realidade distorcida, pintando panoramas tão interessantes e envolventes que é fácil a alguém ligado à sua inclinação estética perder a noção de tempo e espaço face às manobras mesmerizantes de um evidente mestre da arte. Alcançar um feito dessa magnitude por meio de um espetáculo muito perto do indescritível não é, afinal, para os fracos. E Steven, que durante o concerto só transpareceu descontracção e espontaneidade das poucas vezes que pegava no microfone, mostrou estar ao nível a que apenas os intemporais da eletrónica contemporânea aspirariam. Um bem haja a que ainda lá se consiga chegar.