MONTE VERDE’17: A aquarela Brasileira de Seu Jorge e a surpresa Dub FX
2017-08-11, Festival Monte Verde, Ribeira GrandeApós a festa da inauguração, o Monte Verde no seu primeiro dia oficial passou ao seu pouso regular, o espaço situado junto à praia da Ribeira Grande.
Todo o festival de Verão vive tanto do seu cartaz como do carácter simbólico como do sítio que que lhe dá corpo. Desde a “ocupação” da Aldeia de Cem Soldos, até ao anfiteatro natural de Paredes de Coura, passando pelo passeio marítimo de Algés ou a quinta da Atalaia, o território configura não só a estrutura física de um festival mas também o seu carácter. Assim é a localização à beira praia que mais define a cenografia deste evento e constituí o seu chamariz. Claro que quando se fala de praia nos Açores temos de contemplar um espaço de uma beleza mais agreste do que aquela que estamos habituados no continente. A areia negra, as encostas escarpadas, e um mar de uma imensidão que pode não ser tanto perceptível à vista mas que se sente na pele. Mais selvagem, indomado. Até o cheiro é diferente. É assim na praia que se inicia o dia para os festivaleiros, que incluem não só os Micaelenses mas também os romeiros das outras ilhas e da Ibéria. Inclusive já há espaço até para um percentil considerável de estrangeiros. Os Açores são uma descoberta recente para meio mundo, mas de ano para ano nota-se uma afluência maior às ilhas, o que como não poderia deixar de ser se traduz também na descoberta do que culturalmente se faz no meio do Atlântico. O dia vive assim da praia e das actividades que nela se realizam (aulas de surf, Yoga, torneios de vólei, etc.), e é ao pôr-do-sol que o recinto propriamente ganha vida. Composto de dois palcos (Açores Airlines e Delta), o espaço só começou a ganhar vida ao longo da primeira exibição da noite.
Foi assim para um recinto ainda meio vazio que os Passos Pesados se apresentaram. Vicissitudes de primeira banda da noite. Mas os Passos já tem uma rodagem de anos e quilómetros para que o profissionalismo se imponha e a energia não esmoreça. Banda de Ponta Delgada, e é bem que seja com artistas locais que simbolicamente se consagre o espaço, os Passos caminham na senda da grande vaga de rock nacional dos anos oitenta. Aliás o timbre de António Pimentel, fundador e vocalista da banda, tem uma semelhança inegável com Tim dos Xutos e Pontapés. Não sendo propriamente campeões da inovação (e no universo do rock é cada vez mais difícil de encontrar quem o seja, há já algum tempo que a vocação experimentalista se mudou para outros géneros), tem a consistência de quem já faz isto há muito tempo e sabe bem o chão em que pisa. As músicas de toada roqueira como “Johnny, Johnny” intercalaram com baladas mais clássicas como “Pensamentos Sós” do último álbum. Os Passos Pesados tocam num festival em que provavelmente a maioria do público e das outras bandas não seriam sequer nascidos quando estes começaram a carreira. De 91 para cá tanto se modificou no universo musical a começar nas próprias sonoridades passando pela forma como toda a música é gravada e distribuída. Num festival em que se nota claramente que as novas gerações convergem mais e mais para o EDM e o DJ é claramente a nova rockstar, é interessante assistir a uma banda como os Passos e constatar os quão os caminhos da música são imprevisíveis. Há 30 anos a maior parte das bandas que povoava estes palcos andaria neste comprimento de onda. Hoje são uma minoria. Será que dentro doutros 30 teremos qualquer coisa minimamente reconhecível? Os Passos funcionaram sobretudo como lembrança de um tempo um pouco mais inocente, e quiçá naive, na forma de fazer música em Portugal.
Seu Jorge era o nome maior desta noite (porventura do festival) e como tal isso traz um rol de expectativas maior em relação à prestação. Sendo um dos nomes de charneira da música moderna brasileira, Seu Jorge traz aquela mistura de raízes populares e erudição musical que sempre caracterizou os melhores sons do Brasil. É como um jogo de equilíbrio entre a canção orelhuda, com refrões cantaroláveis e convite à dança, e uma recusa do facilitismo, criando laboratórios de experimentação sonora. O Brasil, como país continente que é, tem a vantagem de possuir um repertório tão vasto de música popular dos mais diferentes géneros, que é possível sempre remixar os ritmos de berimbau da capoeira com as concertinas do forró, a batida de samba em caixa de fósforos com o violão, e dai surgir sempre algo que seja fresco e inovador sem sequer sair do terreno daquilo que é genuinamente popular. Se nesse caldo incluirmos toda a sofisticação minimal da bossanova e a miríade de influências musicais vindas de fora, temos um dos mais pujantes e ricos universos musicais do planeta. E a unificar todo este mix temos uma língua que só por acaso também é a nossa, que do outro lado do Atlântico ganhou uma infinita maleabilidade que aqui ainda nos falta. Seu Jorge, no fundo, incorpora as várias essências do universo musical brasileiro. Sendo ele próprio um filho da comunidade, tem a genuinidade de quem absorveu a essência musical na rua, na roda de samba, no baile de favela, no boteco de esquina. Também tem, após estes anos todos como músico, actor e globetrotter, o mundo que lhe dá camadas de eclectismo.
No fundo, assistimos a um desfilar de histórias que formam o retrato de um Brasil que poderíamos encontrar ao caminhar pelas ruas do Rio ou de Salvador.
Aqui no Monte Verde, Seu Jorge teve também uma banda fabulosa a carregar o seu som. Onze músicos em palco (incluindo secção de metais) que não só se destacam pela competência mas também pela presença. Seu Jorge não é exclusivamente um one man show. Isso é sobretudo visível no momento já perto do final do concerto em que o vocalista deixa o palco entregue aos seus músicos. E com patrão fora, dia santo na casa, estes exibem todo o seu flow numa sequência em que se torna claro que era possível ter um concerto de duas horas unicamente com esta banda. Mas, e lá está, como o repertório de Seu Jorge vive muito da dicotomia entre a festa e o intimismo, o melhor momento do concerto foi interlúdio em que os papéis se reverteram e quando o músico ficou só em palco com violão e flauta. A música surge sempre mais clara quando mais descarnada. “Pretinha” do primeiro álbum em nome próprio “Cru” respira melhor na solidão de palco e a versão de “Life on Mars” de Bowie é toda ela feita de oxigénio rarefeito.
Esta foi a calmaria na tempestade dançante de Seu Jorge. No antes e no depois tivemos uma máquina bem oleada de produzir música que debita os êxitos de uma carreira. As crónicas de um Brasil de rua e das personagens que o povoam. No fundo, assistimos a um desfilar de histórias que formam o retrato de um Brasil que poderíamos encontrar ao caminhar pelas ruas do Rio ou de Salvador. “A Burguesinha”, “A Amiga da Minha Mulher”, “Motoboy”, “Vizinha”… As músicas da triologia ainda em desenvolvimento de “Música para Churrasco” são nas palavras do próprio Seu Jorge um olhar sobre o espaço urbano do Brasil. “Chatterton” um original de Charles Gainsbourg é a música que mais surge transfigurada ao vivo, um delírio funkadélico de vocalizações improvisadas e instrumentos dissonantes. No final ainda se tem direito a uma exuberante saída de palco ao som de James Brown, com toda a banda a swingar.
Dub FX é o pseudónimo de Benjamin Stanford, um artista de rua de Melbourne que resolveu enveredar por uma carreira musical. E ainda bem que assim o fez pois o concerto de Dub FX foi uma das gratas surpresas deste festival. O australiano carrega consigo um certo ethos de quem construiu a sua sonoridade nas esquinas e praças das urbes mundiais, pois essencialmente desenvolve as canções fazendo loops vocais sucessivos. Ser uma banda de um só homem não é propriamente fácil e construir uma tapeçaria sonora em palco que soe como se uma banda inteira estivesse ali em cima exige não só o equipamento mas também o sentido de performance.
Musicalmente Dub FX navega nas águas do dubstep, drum n’ Bass e afins. A música das ruas de Kingston nas variantes vocais do homem das ruas do mundo. Como o próprio Stanford fez questão de referir a certa altura, a raiz da música jamaicana são os ritmos de África e estes são os ritmos originais da humanidade, aqueles que afloraram naturalmente aos primeiros homens a partir do batida do coração e do compasso natural da marcha nómada. E um concerto é sobretudo a reactualização do espaço sagrado de magia e ritual, destinado a unificar a tribo. A tribo pode ter crescido desde esses primeiros dias mas a necessidade destes espaços de ritual congregante não só se mantém mas são mais necessários do que nunca para evitar que a humanidade se auto destrua num marasmo de individualismo e apatia. Dub FX é aqui o maestro da cerimónia e apesar deles serem filtrados pelo melhor que a tecnologia oferece em termos de sequenciadores, pedais de distorção e loop stations, os sons que toda esta maquinaria filtra continuam a ser os mesmos de sempre: aqueles que são emitidos por uma traqueia humana.
Ser uma banda de um só homem não é propriamente fácil e construir uma tapeçaria sonora em palco que soe como se uma banda inteira estivesse ali em cima exige não só o equipamento mas também o sentido de performance.
Em palco, além de Stanford, estiveram os delírios cósmicos do saxofone de Mr. Woodnote, e presença da futura (ou actual, não deu para perceber) Mrs. Dub FX. Um grande concerto que só não evoluiu para outros picos graças a um público que se manteve estranhamente apático se não mesmo relutante em entregar-se ao som. Durante a última música e antes da explosão final, Stanford pede para que toda a gente na audiência se abaixe: menos de metade do público respeitou o pedido apesar de este ter sido repetido muitas vezes, a ponto de causar vergonha alheia. Timidez? Snobismo? Pouca compreensão? Não se sabe mas é pena, sobretudo quando o público português costuma ser dos mais participativos e entusiastas. Mas quando a única nota negativa de um concerto não provém de nada que estava a chegar do palco, então é mesmo nota mais para este espectáculo de (quase) um homem só!
Fotos: Cão de Fila Produções/ Monte Verde Festival