O filósofo maldito alemão dizia «quando olhas demoradamente o abismo, ele olha-te de volta». Foi isso que experimentámos no último dia do NOS Primavera Sound de 2018.
De Cave e dos Bad Seeds não esperávamos nada mais do que o melhor. A chuva que teimava em não parar durante as horas que antecederam o concerto fazia temer o pior. Tivemos o melhor de Cave e até o monstro mau, essa chuvinha irritante, acabou por ser o elemento chave para tornar este concerto num momento único, irrepetível e inexplicável, assentando que nem uma luva aquele cliché do “só quem lá esteve sabe o que se passou“.
Ainda não estávamos no anfiteatro natural em frente ao palco NOS, quando começou a soar a onda distorcida de som e aquela oscilação aguda de “Jesus Alone”, como o chamamento para o rito caviano. Dirigimos-nos rapidamente, já hipnotizados, e sentimos desde o primeiro momento que este seria o concerto mais fabuloso do Primavera.
Se Cave foi Zeus, Warren Ellis foi o seu trovão, que nos faz estremecer e nos desperta do feitiço lançado pela voz, ainda, assombrosa de Nick Cave
Se Cave foi Zeus, Warren Ellis foi o seu trovão, que nos faz estremecer e nos desperta do feitiço lançado pela voz, ainda, assombrosa de Nick Cave, como em “From Her To Eternity”, “Red Right Hand” ou em “Tupelo”, onde, Cave avisa que aquela é uma música sobre tempestade e se não começou a chover ainda mais, o nosso cérebro tramou-nos com toda a envolvente e achamos mesmo que o pai omnipotente do dodecateão encarnou em Cave. Mas destacar apenas Cave ou Warren, acaba por ser sacrílego, os Bad Seeds são aquele bandão que todo o frontman gostaria ter atrás de si, que tornam qualquer concerto numa liturgia transcendente. Vénia a Martyn Casey, Jim Sclavunos, Thomas Wydler e Lawrence Mullins que tem tocado no lugar de Conway Savage, afastado dos palcos desde que lhe foi diagnosticado um tumor cerebral.
À semelhança de outros concertos da digressão de “Skeleton Tree”, Nick Cave passou grande parte do concerto junto dos fãs, olhou-os nos olhos, sussurrou aos seus ouvidos, acarinhou-os e recebeu tudo em troca e em dobro. Houve excepções como em “Into My Arms”, com Nick nas teclas, e um dos momentos mais emotivos do concerto, em conjunto com “Girl in Amber” (agora com Warren ao comando do piano) ou em “Jubilee Street” onde abandona os seus fiéis para pontapear o que aparece no seu caminho.
Em “Push the Sky Away”, Cave convida alguns deles para se juntarem a si em cima de palco e sabíamos que seria a última paragem desta viagem. Tudo conta, na hora do balanço, e teria sido perfeito se o patrocinador do festival não tivesse resolvido espalhar ridículos chapéuzitos de chuva, que se iam abrindo e fechando, quebrando o feitiço, interrompendo uma plena absorção ontológica.
Em jeito de balanço final, e sendo o Primavera Sound um festival que se pauta por ser ecléctico sem ser esquizofrénico, e que apostou em três headliners de estilos diferentes, a “poper“, o “hip poper“, e o “rocker“, podemos fazer a nossa prova dos 9. É assunto recorrente na imprensa, a medição de quem é o maior, se nos serviços de streaming quem ganha são os primeiros, ao vivo, seja em quantidade de massa humana, seja em qualidade sonora proporcionada, ainda será o rocker. A atracção pelo abismo.

