Out.Fest: Peter Evans, Fennesz e Dean Blunt
2014-10-03, BarreiroA Casa da Cultura da Baía do Tejo, no Barreiro, acolheu o segundo dia do festival Out.Fest, numa noite marcada pelo ecletismo das actuações: do jazz vanguardista de Peter Evans, da electrónica ambiente de Fennesz e do performático Dean Blunt.
Incitados por aquele que foi um dos melhores concertos do ano passado, o retorno de Dean Blunt a Portugal seria necessariamente um chamamento impossível de ser ignorado. A aumentar a força do convite juntava-se o austríaco Fennesz, que lançou “Bécs” este ano, e tem provavelmente um dos melhores acompanhantes de sessões de leitura e introspecção: os seus álbuns de colaboração com Sakamoto, e o quinteto de Peter Evans, para quem Portugal já não é desconhecido.
O norte-americano Peter Evans foi o responsável pela abertura da noite, fazendo-se acompanhar de Sam Pluta na electrónica, Jim Black na bateria, Tom Blancarte no contra-baixo, e Ron Stabinsky no piano, a substituir Carlos Homs, que faz parte do quinteto original. É notório o interesse de Peter Evans na exploração jazzística do trompete numa abordagem mais atonal, embora isso nem sempre se confirme como regra. Da intensidade caótica do turbilhão free surgem também momentos mais canónicos com beleza acentuada pelo caos precedente. E é nessa ambivalência que a linguagem do quinteto se afirma. Pela mestria rítmica e harmónica dos músicos, o concerto é marcado por dinâmicas, por vezes violentas, que se vão distinguindo mutuamente. Levando muitas vezes ao limite razão crítica do espectador, o que pode surtir dois tipos de efeitos: ou repudiamos pelo desconforto ou somos tocados pelo gigantismo artístico e musical de um modo indizível. Contentes por dizer que foi o segundo caso.
Pela mestria rítmica e harmónica dos músicos, o concerto é marcado por dinâmicas, por vezes violentas, que se vão distinguindo mutuamente.
Fennesz, com guitarra à cintura e laptop à sua frente,veio dar-nos razões suficientes para continuarmos sintonizados na sua música. Com “Liar”, segundo tema do álbum e segundo tema ao vivo, entram os graves potentes que fazem estremecer a sala, onde camadas abrasivas se multiplicam encadeadas torrencialmente. Mas “Bécs”, o seu sétimo álbum a solo, lançado este ano, tem também outros momentos mais interessantes de reproduzir ao vivo, onde a guitarra assume um papel mais activo, como na “Bécs” e na “Liminality”, esta segunda, desempenhando um momento épico em concerto, com a sua chuvosa guitarra distorcida, oferecendo uma estranha quietude de espírito. Tudo alinhado entre a beleza e a densidade da distorção, num concerto que só pecou por ser um pouco curto.
Para quem assitiu ao concerto de Dean Blunt no Maria Matos no ano passado, a vertente performática não seria algo inesperado. A sala às escura e as máquinas de nevoeiro a trabalhar para um ambiente enigmático, dão-nos logo à partida as directrizes que compõe o espectáculo. Dez minutos de introdução com a sala às escuras, onde se ouve um piano esparso acompanhado por um saxofone, sempre com o barulho de água corrente por trás. Do álbum The Redeemer, Dean Blunt apresenta-se em palco com a música “The Pedigree”, momento em que é revelado o cenário: por trás de Dean, do qual só conseguimos ver a silhueta, está iluminada a figura do que faz lembrar um guarda-costas, que se mantém sempre estático do princípio ao fim do concerto. O mise-en-scène já o conhecemos do outro concerto, mas para quem vê pela primeira vez é sempre desarmante e gerador de confusão.
Depois de algumas músicas do The Redeemer e The Stone Island, como “Three” e “Demon”, chega a vez de ouvirmos coisas do novo álbum “Black Metal”, que vai ser editado em Novembro. Guitarras acústicas sampladas, beats de hiphop, e a sempre monocórdica voz de Dean Blunt, em contraste com a doce e melódica voz de Joanne Robertson, que também toca guitarra eléctrica, quase sempre cavernosa, em algumas músicas. Após a faixa “50 cent”, que foi relevada há umas semanas, e uma outra nova, vem um interlúdio no mesmo formato que a introdução. Sala às escuras, fumo, sempre muito fumo, cada vez mais fumo, tornando o ambiente da sala ainda mais denso, e de volta Dean ao piano, o saxofone – tocado por alguém que mal conseguimos ver do lado direito do palco – e som de chuva contínua.
A quantidade de camadas de significação sem resposta definitiva faz-nos sair do concerto como quem sai de uma peça teatral complexa.
Mais duas músicas do novo álbum, sempre com a sala às escuras, até que a violência dos strobes (ou luzes intermitentes, vá) interrompe-nos pelas pupilas já habituadas à penumbra. Ouve-se um “dá-lhe” entre o tumulto gerado. Momento visivelmente incómodo (no pun intended), e fisicamente desconfortável, é a agitação nas cadeiras que o denuncia. Uma massa sonora invade-nos o corpo, em frequências mais sensíveis do que audíveis, e cresce. Cresce em frequência até ultrapassar o que é humanamente possível de ouvir. É o climax. É mais um símbolo indecifrável de toda a semiótica que acompanha o espectáculo de Dean Blunt. Sem que os strobes voltem a parar, o concerto continua com mais duas músicas novas, terminando na “Mersh”, com mesmo padrão-não-aconselhável-a-eplépticos de luzes vermelho-branco que podemos ver no videoclip da mesma no Youtube. Saímos dali incrivelmente derrotados. Não podemos falar só de música quando falamos de Dean Blunt. A amálgama de indícios artísticos que nunca são inteiramente relevados, o enigmático da figura e da figuração, a quantidade de camadas de significação sem resposta definitiva faz-nos sair do concerto como quem sai de uma peça teatral complexa, e com certezas de que Dean Blunt é dos artistas mais originais da música dita mais à margem. Isso ou, é caso para dizer, quero fumar do que ele anda a fumar.