Boom 2016: Fogo Reposto
Sai-se do Boom com a impressão de que, mais do que qualquer evento, concerto, instalação, a fonte maior de perpétuo fascínio e surpresa são mesmo as pessoas.
Existe um curioso distanciamento da imprensa nacional em relação aos 7 dias do Boom Festival. Distanciamento que só se torna mais notório quando comparado com o interesse internacional que este desperta. A experiência de viajar pelo mundo permite-me fazer uma pequena inferência estatística que vale o que vale: apresentando-me (ou sendo descoberto) como português, a primeira reacção mais frequente é a invocação do nome de São Cristiano Ronaldo (lamento a desilusão dos fãs da Amália ou Vasco da Gama, mas no momento esta é face mais visível da nacionalidade lá fora). A segunda é: Boom. Ou já foram, ou querem ir, ou conhecem quem já tenha ido, ou, ou, ou….
Uma derivação da cena Goa-Psy trance dos anos oitenta e noventa, o Boom evoluiu organicamente para se tornar um espaço de polinização visionário, alquímico, trans-cultural. A dificuldade de percepção destas noções num meio jornalístico e cultural que continua a ser pequeno, tacanho e provinciano, será uma das razões da indiferença, quando não hostilidade clara, perante este ovni da cena festivaleira de verão. A outra será a postura anti comercial, que rejeita o patrocínio de marcas de cerveja e de directos televisivos, conduzidos por jovens apresentadores frescos do estilo curto circuitado. Dúvidas houvesse, basta reparar na igual não atenção devotada a outro grande evento internacional que tem lugar na nossa calcinada nação chamado Trojan Horse is an Unicorn. Elogios lá fora. Indiferença e/ou apupos cá dentro. Há séculos que Portugal vive esta tensão entre uma minoria vanguardista, que concebe e realiza projectos que podem mudar, e já mudaram o mundo, e a imensa maioria, que nas praias do Restelo reclama o quanto isso consome do erário público, e que não serve para nada, e como poderia ser tão melhor gasto na betonização e eucaliptação do país.
O Boom como equivalente moderno do projecto da Ordem de Cristo que veio a ser os descobrimentos? Porque não? Passados quinhentos anos, agora sem delírios religiosos e pretensões colonialistas, realizarem-se novas expedições de caravelas nos oceanos da mente, do corpo e do espírito. Há naus virtuais ancoradas ao pé de Idanha-a-Nova, prontas para atravessar o Bojador.
Sendo talvez a mais primitiva visão do homem em relação a si próprio e ao mundo que o rodeia, o xamanismo é a origem primordial de todas as nossas filosofias e religiões.
O tema deste Boom foi o xamanismo, um termo que se torna fundamental recuperar no ponto da história em que nos encontramos e que, ao mesmo tempo, tem de ser reinterpretado, sob a pena de ser mal compreendido. E aplicado. Sendo, talvez, a mais primitiva visão do homem em relação a si próprio e ao mundo que o rodeia, o xamanismo é a origem primordial de todas as nossas filosofias e religiões. É a visão xamânica que se encontra presente na arte rupestre do mundo inteiro, de Lascaux ao outback Australiano, pois era essa mundivisão que orientava os passos dos nossos antepassados num mundo que lhes era novo, apesar de já ser velho de milénios. E essa mundivisão consiste, na sua estrutura mais simples, na percepção da natureza, da existência, como um todo orgânico, em que é impossível a inseparabilidade de qualquer um dos seus elementos, como células num organismo que possuem individualidade, mas são de qualquer forma os elementos constituintes de um todo maior.
Uma visão que torna bem mais difícil a apropriação aos elementos da terra como um recurso inerte a ser explorado ao nosso bel-prazer, ou dos animais como repositórios ambulantes de nutrientes prontos a serem produzidos em massa. Torna sobretudo mais difícil os níveis massivos de alienação, isolamento e solidão que o ser humano moderno experiencia numa base diária. A visão xamânica foi aquela que nos permitiu dar os primeiros passos no desconhecido e é vitalmente necessária nestes tempos em que é exigido que a humanidade mature. Ou saia de cena…
O xamanismo contém a semente holística imprescindível para a realização de qualquer projecto político, económico ou científico que tenha pretensões de se tornar viável e sustentável. Sem ela temos apenas conjuntos desagregados de ideias ou experimentos destinados à obscuridade. OU, pior ainda, à tragédia. O homem precisa de realizar a grande reconciliação com a natureza e com o princípio feminino do universo que há tanto tempo foi lacerado. A expulsão do Éden pesa ainda sobre a psique humana, e é por isso o retorno ao jardim das delicias é um elemento fulcral para restaurar a ordem perdida. Seja de forma individual, em pequenos grupos ou em grandes colectividades como o Boom.
Desde a segunda guerra e o holocausto que se pressente que há algo fundamentalmente errado na mundivisão que dita o nosso destino nos últimos milénio. Desde os anos sessenta que se pressente que outro mundo é possível. O relógio da terra está hoje muito próximo de um ponto de irreversibilidade que impede o adiamento deste câmbio fundamental para um hipotético amanhã. A construção de um novo presente tem de ser feito de forma estruturada, disciplinada, com pés bem assentes no chão, mas tem de ser feito já. O visionarismo já não é um luxo: é uma necessidade, sob pena de não haver amanhã possível. Os “Booms” deste mundo são eventos de alto impacto, fundamentais para garantir o futuro, de uma forma que vai para lá de debates e conferências. Porque trabalham em simultâneo os 4 elementos que constituem a natureza: terra, água, ar e fogo. Que constituem cada um de nós. Pois nós também somos a natureza.
TERRA
A aproximação à Boomland é feita numa espiral de terra e pó. Desde o ponto de entrada original, na ermida de Nossa senhora do Almortão, desce-se mais e mais em direcção ao umbigo da região, nas águas da barragem Marechal Carmona. A Beira Baixa é, simultaneamente, bela e inclemente. Tem qualquer coisa de Alentejo, mas os penedos que brotam do solo relembram que há muita rocha viva neste chão. Ao cair do dia a paisagem pinta-se de dourado, pontuada por árvores retorcidas, e veículos de Boomers que o atravessam lembram uma qualquer caravana psicadélica em direcção à terra prometida. Ou talvez as corridas pós apocalípticas de Mad Max. Vêm dos quatro cantos da terra. A existência de mais de 100 nacionalidades a conviver neste local improvável é, já de si, surpreendente. E é impossível para um português não suprimir um sorriso ao pensar que o nome Idanha-a-Nova traz um calor especial ao peito de tanta gente pelo mundo fora.
Os festivais, como grandes eventos congregadores, são, primeiro que tudo, a terra onde se realizam. É no solo que se pisa que tudo começa. É nele que a semente plantada vai germinar nova vida. Do pó da terra provimos e a ele retornamos: a sabedoria primordial que sobrevive a tantos séculos de distorção. Assim, a terra gera e dá o nome e o esboço da identidade. Em Portugal, os nomes das terras festivaleiras tornam-se míticos: Vilar de Mouros, Cem Soldos, Paredes de Coura, Zambujeira do Mar. Lá fora, Glastonbury, Woodstock ou Mojave. Serão estes sítios Stonehenges dos tempos modernos? Locais sacros da terra onde, uma vez por ano, normalmente próximo dos solstícios, se realizam rotas de peregrinação para realizar rituais de fertilidade, renovação das estações, agradecimento perpétuo à vida que nos gera? Talvez seja apropriado então a construção de uma grande estrutura megalítica permanente, que rivalize e supere a espectacularidade das muitas estruturas temporárias que aqui são erigidas nos meses que procedem o festival. Estas são uma das fontes de perpétuo deslumbramento para quem se passeia pelo espaço do Boom. Produto de artistas do mundo inteiro, são como totens que pontuam o espaço, casando-se com as formações naturais do terreno e com a vegetação local. Madeira, bambu, aço, terracota, linho, material reciclado, cortiça. Imensos e icónicos como o fabuloso Xamã de Daniel Popper que, sem dúvida, foi a imagem de marca deste Boom, ou pequenos e subtis, de tal modo casados com a natureza local que nos interrogamos se não estiveram sempre ali, quiçá um traço arqueológico de uma civilização desaparecida Idanhense. E se a surpresa na deambulação é grande durante o dia, atinge novos píncaros à noite.
As luzes acendem-se tornando feérico todo o ambiente. A meia-lua do Boom existe agora separada do resto do continuum espaço-temporal. Retro projecções e vídeo maping dão nova vida e um novo contexto às peças. E quando estas técnicas são utilizadas de forma subtil e inteligente na vegetação, a mente consegue, por uma vez, ultrapassar este nosso imenso divórcio entre tecnologia e natureza, entre o que é orgânico e artificial. Árvores e arbustos e frutos e os veios de água que os nutrem e os nutrientes do solo que os alimentam são, apenas e só, uma tecnologia tão avançada que temos dificuldade em equacionar com as formas semi primitivas que ainda empregamos. A paisagem que se atravessa, com ou sem rumo definido, ao longo destes dias, é uma fusão tecno orgânica, uma dança harmónica entre o produto do homem e o produto da natureza. Que são um só.
Espaços como o Boom geram consciência e despertam memórias.
No Boom esboçam-se modelos de habitar o planeta sem que haja uma disrupção do mesmo, pois um sistema harmónico beneficia todas as suas partes. Somos muitos e deixamos uma pegada pesada sobre a terra, eis um dos grandes problemas que a nossa existência, tal como ela é compreendida hoje, provoca. Pode o ser humano moderno pisar de forma mais leve o solo, como um felino que mede cuidadosamente o impacto de cada movimento? Sai-se do Boom com alguma esperança nesse quesito, pois, durante dias, vivemos rodeados de trinta mil almas que deslizam e fluem de forma algo mais graciosa que numa urbe moderna.
Mais do que qualquer evento, concerto, instalação, a fonte maior de perpétuo fascínio e surpresa no Boom são mesmo as pessoas! Somos todos nós. Uma cornucópia de corpos, rostos, sorrisos, movimentos, indumentárias, adereços, maneiras de estar e viver. Um fluxo continuo de vida nessa expressão peculiar que é o ser humano. E é de lembrar que se o humano é o culpado dos presentes males da terra, será ele também a solução. Todo o jardim precisa de um jardineiro, de um guardião. A grande tragédia da nossa presença neste planeta é que aqueles, que receberam a missão de zelar e proteger, se tenham tornado avatares de destruição. Mas tudo pode ainda ser revertido, se houver consciência e memória. Espaços como o Boom geram consciência e despertam memórias. Talvez não para todos, mas basta isso acontecer isso num percentil largo o suficiente para gerar massa critica e repercutir pelos campos morfogenéticos da humanidade. É a nossa escolha. Pois esta terra já aqui estava, e não sendo bem cuidada tem mecanismos eficazes de garantir o despedimento sem renovação de contrato dos actuais ocupantes.
Até os terrenos pacíficos e idílicos da Boomland escondem os seus perigos, os anticorpos da natureza. A população nativa e bem portuguesa de lacraus está por aqui, atrás de rochas e de arbustos, de prontidão com sua picada, não letal, mas bastante dolorosa, para relembrar que a natureza pode ser madrasta. A terra gera, e à terra tudo o que foi gerado será devolvido.
ÁGUA
Os dias quentes de Agosto do festival, sob um sol escaldante e inclemente, geram sede, suor, desidratação, o desejo de fresco. A água é o bem mais precioso no deserto, e embora a Boomland esteja muito longe de ser árida, é assolada pelo bafo seco mediterrânico que leva os corpos a procurar a sombra e o fresco. As muitas peles tom de leite rapidamente ganham tons mais ardentes, e os borrifadores são o meio mais valioso de estabelecer o contacto com o outro. A bolha que o ser humano tantas vezes usa à sua volta no mundo moderno, que o protege e o impede de contacto humano, é aqui dissolvida pela força da água. Eu borrifo-te logo vejo-te, comunico, vou ao encontro. Não se está sozinho no Boom. Por muito que se queira. O ambiente à beira desta barragem é líquido e a cada dia mais se liquidifica. Como se houvesse algo que se dissolve dentro de cada um ao longo dos dias, que se torna menos áspero, rígido, apartado. Todos os caminhos conduzem às águas que bordeiam todo o perímetro do festival. E tendo em conta que os duches são parcos e obrigam a longas filas, é para a água que os corpos convergem para fugir à secura do ar, ao desconforto do calor.
No Boom, o clima e o movimento pedem pouca roupa, e mesmo esta desaparece, muitas vezes na totalidade, no encontro com as águas. A nudez é bem vista e encorajada no Boom. Este não é festival para pudicos nem para mirones. Cada um, no Boom, deseja fortemente ser ele próprio. As pinturas corporais multiplicam-se. Há homens de tutus e mulheres de andas. Há dinossauros e múmias e famílias rastafári escandinavas. Foi inclusive avistado o mankini do Borat, possivelmente a peça de roupa com mais potencial de provocar cegueira em quem a contemple alguma vez criada pela imaginação humana. O boomer para aqui converge apresentando-se na sua essência. Talvez que na realidade lógico-empirista que governa o mundo tenha de viver como Clark Kent, mas aqui pode ser o Super Homem. Mulher. Whatever.
Este não é festival para pudicos nem para mirones.
A água constitui 70% do corpo e adopta a forma do recipiente em que é despejada mantendo sempre a sua essência. No Being Fields, a área do Boom dedicada à reconexão de corpo, mente e espírito, a água é um dos elementos mais presentes. E o som. Apresentando toda uma gama daquelas que são, preguiçosamente, denominadas terapias alternativas (que se o são, apenas o são em oposição a um modelo mecanicista e desvitalizado, que pouco tem feito para prevenir o colapso físico e mental do homem moderno, que remenda, mas não sana). Este é o mundo que, visto de fora, mais facilmente pode ser visto como um conjunto de metodologias pseudo científicas, pouco sérias, impregnadas de misticismo new age. E visto de dentro? A visão cínica vai sempre encontrar por aqui terapias e terapeutas, práticas e visões, modos de ser e estar dignos de escárnio. É um mundo em que práticas milenares da china taoista ou da Índia védica, se misturam e interpenetram com correntes que podem ter apenas décadas. Anos. Semanas. A banha da cobra anda de mão dada com técnicas e conhecimentos que são vitais para a saúde real do indivíduo. Muitas vezes não reconhecemos a cura porque não compreendemos verdadeiramente a doença. Estas águas têm de ser navegadas pela via do meio em que o coração está aberto e a mente aguçada. A essência, o bem-estar e a vitalidade de quem se entrega nas mãos de qualquer terapeuta são demasiado preciosos para serem desperdiçados em charlatanice ou dogmatismo. No Boom em que muito se dança, se exprime, se vive é fundamental a existência de uma área que permita o repouso, o restauro, a reconexão.
Não estando situado no Being Fields, o Boom possui também aquela que será talvez a sua mais preciosa e original contribuição no campo terapêutico, o Kosmic Care. Hospital ou clínica ou espaço de apoio, para mentes em desassossego, o Kosmic Care faz um dos grandes trabalhos de vanguarda do mundo inteiro na gestão do uso de substâncias. Todos aqueles que não tem a certeza do produto que têm em mãos ou que estão a passar por uma experiência difícil, têm aqui um espaço que permite que o momento passe e se transforme. Sem julgamentos.
O Boom tem drogas? O Boom tem muitas drogas.
E chegado a este ponto, a pergunta da praxe: O Boom tem drogas? O Boom tem muitas drogas. Ou melhor dizendo, o Boom tem uma quantidade imensa de substâncias psicoactivas das mais diferentes naturezas que, desde os anos sessenta, se convencionou arrumar debaixo do guarda-chuva colectivo de “Drogas”. O Boom tem erva, haxixe, MDMA, LSD, cogumelos, salvia, DMT, Ketamina, álcool e cafeína. Na exacta medida em que o mundo para lá das fronteiras da Boomland tem todas estas substâncias e muito mais impregnadas no tecido social e muito mais. A questão real é quais delas são sancionadas e encorajadas e comummente utilizadas em cada uma destas realidades paralelas? O fetiche que o mundo do capital e da competição e da separação tem por uma cafeína que alimenta os níveis de energia necessários para manter a insaciável roda em movimento, e por um álcool que permite o escape e o alívio e o esquecimento da condição de escravatura de dividas e obrigações, deixa pouca moral para apontar o dedo ao que se passa na realidade do Boom. Aqui substâncias são maioritariamente usadas para reconexão, para expansão da consciência, para ver o outro. Dúvidas houvesse e bastava passar uns dias neste espaço para sentir as diferenças de olhar, de contacto, de interacção. De dia e de noite. Fluídas e sinceras. Como água.
Também aqui se vê a preguiça e a malícia de um establishment apequenado cuja única mirada para estas terras durante estes dias é à procura de escândalo no consumo de substâncias. Os maliciosos são poucos, mas sabem bem o que fazem. Os preguiçosos são muitos e serão sempre as principais vítimas da sua própria ignorância. Pelo muito que perdem. O Boom celebra a cultura enteogénica das grandes medicinas visionárias que estão presentes no corpo do homem e da natureza (que são um só), e que sempre acompanharam a humanidade nas buscas de visão que guiaram a sua trajectória. Aqui o psicadelismo sagrado está fora do armário, e, dúvidas houvesse, constate-se a coragem de baptizar a principal avenida da Boomland que percorre todo o espaço desde a Funky Beach ao Being Fields, com o nome do Dr. Albert Hoffman, que ao realizar a sínteses da dietilamida do ácido lisérgico reintroduziu o poder xamânico há muito esquecido dos enteogéneos no mundo moderno. Muito boomer terá homenageado o Dr Hoffman percorrendo de bicicleta a sua avenida sob o efeito da sua “criança problema”. Não há renovação das águas sem o suporte das medicinas visionárias da terra e estas apontam e despertam os caminhos da imaginação necessários para responder aos desafios do momento.
Seja então pelo uso de enteógenos, pela alquimia colectiva da dança, pela visão presente a cada canto e recanto, sente-se um espírito presente neste festival, que só pode descrito como liquido. Fluído e harmónico.
AR
A Liminal Village pode ser descrita como o espaço do Boom onde a mente é acarinhada. Mas um olhar mais fundo sobre todo o rol de debates, filmes, palestras, que passaram por esta sala de conferências aberta aos elementos, faz com que a descrição mais apropriada seja o espaço onde a mente é desafiada. Alguma intelligentsia mais formalista torce ainda o nariz a que os espaços geradores de ideias, os grandes laboratórios de pesquisa politico-económico-cientifico, possam realizar-se fora do âmbito dos seus enclaves tradicionais: as universidades. Há uma seriedade associada à noção de encontros de mentes que faz com que as ideias destas não só possam ser realizadas no meio do pó, dos corpos semi ou completamente despidos, das cores e do hedonismo; como, na verdade, ser justamente o relaxamento e a informalidade do setting que faz com que a mente possa sair da caixa de paradigmas pré concebidos e, mais facilmente, se abra ao inesperado. A experiência das áreas dedicadas ao lúdico, existentes hoje em dia em praticamente todas os grandes conglomerados de Silicon Valley, como a Google ou a Apple, demonstram a tomada de consciência de que o mundo é feito de ideias e que uma atmosfera de corpos relaxados, satisfeitos, em paz, é o melhor condutor para a geração das mesmas. Do outro lado do Atlântico, no cenário igualmente quente e bem mais inóspito do Burning Man, há muito que se dá este fluxo livre de mentes e ideias: reza a lenda que muito app, muita aplicação prática de ideias radicais, muita ONG, foram lá geradas. Os grandes festivais temáticos são também grandes úteros, incubadores de projectos que a partir destes pólos nevrálgicos de caos criativo lançam os seus tentáculos virais pelo mundo. Ou, se calhar, a melhor analogia será um campo de sementes, que o vento encarrega de dispersar.
É duvidoso que a mudança que o planeta desesperadamente necessita venha de um qualquer assomo de inspiração e de boa vontade das lideranças centralizadas, de governos, bancos e corporações: estes estão demasiados envolvidos em ganhos populistas e eleitoralistas e na manutenção do status quo para providenciarem qualquer solução. Bem mais provável é que essa mudança venha de um fluxo bottoms up, e nesse aspecto congregações como o Boom que não são especificamente orientadas para uma área ou público especifico (nem sequer existindo primariamente como espaço de conferência) são fundamentais. Inteligência artificial, xamanismo moderno, trans humanismo, permacultura, energias renováveis, sistemas económicos pós capitalistas, o papel da arte na ligação ao numinoso, as terapias holísticas….. todos os grandes tópicos fundamentais para a nossa perpetuação enquanto espécie de forma minimamente saudável e equilibrada, por aqui passaram ao longo dos dias e noites quentes de Agosto. E num evento onde o espaço é percorrido por toda uma imensa praia, onde múltiplas tendas de dança chamam o corpo, onde as possibilidades são mais que muitas, é significativo que esta área de pensamento e debate tenha estado sempre cheia do início das manhãs até à madrugada alta. O Boom como espaço de alienação? Só para quem cá não entra com medo de ver a pequenez dos seus preconceitos espelhados.
Ao lado da Liminal Village fica o MOVA (Museum of Visionary Art). Espaço de exibição de pintura, escultura e instalações multimédia reúne o melhor que se faz no mundo inteiro sobre essa estranha bandeira que é a chamada arte visionária. Estranha porque toda a arte digna desse nome é por definição visionária. Bosch, Kahlo ou Picasso são para lá de qualquer dúvida artistas visionários. O que mais correctamente agrega os artistas aqui reunidos é a tremenda influência que as experiências com estados alterados de consciência produziram na sua arte. Enteogéneos e plantas visionárias mas também técnicas como a respiração holotrópica ou o sonho lúcido. Android Jones, Alex Grey, Ben Ridgway ou Luke Brown são sobretudo mapeadores do hiper espaço, navegantes das águas desconhecidas para lá do ego e da psique humanas, trazendo para o lado de cá alguma informação visual dos territórios bárdicos. Os precedentes deste tipo de arte encontram-se, assim, menos nos grandes museus do mundo ocidental e mais nas paredes dos templos do Tibete ou da Índia ou do Egipto. E mais ainda para trás, nas profundezas das grandes grutas. Esta é arte do Xamã, a visitação dos reinos superiores e inferiores, subindo e descendo a árvore da vida, para o bem de todos. Uma arte que procura explorar não tanto as neuroses e aspirações do individuo mas o sonho colectivo da espécie e do cosmos. O estético e o intelectual são dois territórios vizinhos e inseparáveis e no Boom é esta acertadamente a posição física que ocupam.
E quem tenha lido até aqui pergunta-se: e a música? Não é esse o ponto central do festival? Não é o Boom sobretudo um festival de trance?
FOGO
E quem tenha lido até aqui pergunta-se: e a música? Não é esse o ponto central do festival? Não é o Boom sobretudo um festival de trance? Talvez já não o seja há já algum tempo, mas com todas as suas permutações esta é a coluna central, o pilar que sustenta o resto do edifício. E talvez isto seja verdade de qualquer grande festival iniciático. Não é o som que gera o mundo? Não diz a sabedoria oriental que é o Ohm que gera e sustenta a existência? O maior de todos os festivais que alimentou ao longo de séculos o edifício que viria a ser chamado de cultura ocidental foi os Mistérios de Elêusis na Grécia antiga. Celebrados anualmente ao longo de dois mil anos sem interrupção, foram o principal evento religioso da antiguidade clássica. Praticamente todas as grandes figuras do mundo pagão por lá passaram: aqueles que desenvolveram as matemáticas, filosofias, geometrias, leis, estéticas, perspectivas e tudo o mais que dá corpo ao mundo que nos cerca. Quais os principais elementos de Elêusis? A dança, a música, as visões recebidas através de enteógenos. O Boom pode traçar a sua linhagem até há muitas luas atrás. O facto de haver descontinuidades ao longo do percurso não afecta a legitimidade. Nas praias de Goa antiga, a Índia portuguesa, os refugiados da era pós hippie começaram a congregar e a realizar grandes festas pela noite fora. Ao som do rock progressivo ao início, introduzindo pouco a pouco a electrónica ao mesmo tempo que esta aparece no resto do mundo, mixando e remixando influências de ritmos planantes, world music, graves poderosos, metendo a batida nos 135 BPM, o Goa Trance surge nos anos noventa como a banda sonora do novo tribalismo. Das praias de Goa para as praias do mundo, não demorou muito até que pequenas festas, e grandes festivais aparecessem a congregar fieis. O Boom nasce desta onda, e mantém-na no seu núcleo. A batida, o ritmo, o som unifica as partes díspares.
O Dance Temple é para muitos o principio e o fim do Boom. Há quem aqui dance, se reúna com os amigos, coma, durma. É possível tropeçar ao longo do ano em Boomers que juram a pés juntos não existir qualquer festival para além do espaço que separa a tenda do templo. Os mais hardcore podem até fazer do Templo a tenda. Grande, imenso, luminoso durante o dia, obscuro e intenso à noite, o Templo é um espaço ao mesmo tempo expansivo e uterino. É aqui que se encontram os devotos mais ferozes do género. É aqui que os movimentos de dança são mais exuberantes, mais acelerados, mais percussivos. Estar no centro do Templo é surfar uma onda de energia poderosa e perigosa. Não é exactamente meiga. Há muita vibração diferente no ar. Muita colisão de partículas. O Deus que preside ao templo é um deus do Kaos. Kali, Seth, Tiamat. Antes de haver harmonia tem de haver desconstrução. O que está preso e fossilizado precisa de ser solto. Liberto. O Templo é uma imensa sombra ultra violeta de libertação de pulsões. Aqui o animal que há no humano pode viver e ser ele próprio. Há quem fuja desta energia. Quem passe o Boom a circundar cuidadosamente a área do Templo. “Not for me”. Mas há aqui dentro, no centro deste espaço, a imensa lição de se ser um ponto de energia consciente no meio do caos. A lição da soberania sobre a nossa consciência.
Estar no centro do Templo é surfar uma onda de energia poderosa e perigosa.
No Alchemy Circle a imprevisibilidade é maior. Criado e evoluído ao longo dos anos para dar maior visibilidade a outros estilos e correntes da música de dança, é o forno alquímico onde DJs podem experimentar novos ritmos, grooves, ondas sonoras. Passar pelo Alchemy é nunca saber bem o que se vai encontrar. Aqui estão os maiores desapontamentos e as mais gratas surpresas. Dark Progressive, Krautrock, Glitch Hop e coisas que ainda não tem nome. E é principalmente por estas que se vai ao Alchemy: coisas que não têm nome. Sonhos sonhados por artistas nas suas caves, quartos, estúdios, e que vão aqui pela primeira vez ganharem corpo real em frente a um público. Aqui no forno vai-se determinar se a mistura de ingredientes resultou e se no final tem-se, ou não, um bolo bem cozido. Saboroso.
A arquitectura do pagode dos Chill Out Gardens é o ponto mais visível do recinto. É avistando os Gardens que pode determinar onde é que se está no espaço. Todo o espaço precisa de uma referência de orientação, algo que no meio do nevoeiro mental nos permita dizer: “Ah, é por ali!” São jardins pois aqui a ambiência sonora estende-se para lá do espaço coberto e prolonga-se pelos jardins circundantes. Este é o espaço de baixar a vibração que foi levantada nas restantes áreas. Permeado pelas diferentes correntes sonoras de ambient sound, cold waves e afins, a sensação é de berçário ou de incubadora. Os Boomers trazem para aqui almofadas, edredons, mantas, sacos cama, e constituem um imenso ninho de relaxamento e boas vibrações. Visto de cima terá qualquer coisa de quase orgiástico. Visto de dentro é só acolhedor. Quiçá noutro tempo se terá dormido assim no chão das cavernas, depois dos festins e da celebração colectiva, o sono e o sonho colectivos. A vivência individual, nas nossas bolhas de não contacto é uma emergência recente na história humana. Muito mais largo é o espaço que o “nós” ocupa na psique humana. Foi assim que demos os primeiros passos: juntos. O espaço dos Gardens traz à consciência a memória antiga de relaxar o corpo e a mente alerta na segurança que alguém está a segurar o espaço.
No Sacred Fire, os ritmos do mundo e os instrumentos ganham presença. Soul, hip hop, Throath singing, Mangue Beat, ritmos do deserto, Bollywood psicadélico. A diversidade e a riqueza musical humana encontram-se neste palco mais discreto, menos ostensivo. Aqui a dança é sempre menos catártica mas mais celebratória, menos rotações, mas mais ginga, menos frenética mas mais cool. É o espaço de encontro com os amigos, onde pode ter uma conversa, ver o outro à média luz, ter encontros e reencontros, trocar histórias, comparar experiências. O pouso ideal para o fim de noite para aqueles que terminam as noites, e a pausa para aqueles cujas noites são apenas um seguimento para a festa do dia que nasce.
No centro do Sacred Fire esteve em tempos alojado o grande fogo que dava o nome ao espaço. Foi deslocado e existe agora rodeado de água, na pequena língua de terra que entra pelo lago adentro e com boa vontade se pode chamar de península. Percorrer o caminho até ao fogo sagrado a partir de qualquer ponto do recinto é deixar para trás batidas, ritmos, coloridos, trocas de ideias, substâncias, arte, debate, discussão, trocas de fluidos, instalações. Tudo é por um momento escuro e silencioso. Ouvem-se os nossos passos na areia e o ruído das ondas. Atrás está o grande ovni do Boom, em todo o seu magnifico caos, toda a sua gloriosa confusão. Passamos subtilmente a barreira para outro mundo, um espaço sacro onde tudo tem outro ritmo e outra gravidade. De repente, à nossa frente está um imenso fosso escavado no chão e uma grande fogueira no centro. Um circulo de seres humanos à volta. Uma espécie de pequeno nicho determina o local onde se senta o guardião, responsável por manter o fogo acesso todas as noites. Mas aparte essa distinção, qualquer ponto do círculo é equidistante de qualquer outro. Aqui são oferecidas músicas, tabacos, rezos. Aqui homens e mulheres de medicina de todo o mundo pedem bênçãos e sustém o espaço.
No inicio deste Boom, Portugal era um inferno de chamas descontroladas, fruto de mentes enfraquecidas, de políticas e políticos de vistas curtas, de interesses económicos dúbios, de má gestão dos nossos recursos e do nosso território. Fruto sobretudo de egoísmos, materialismos e falta de conexão. Com o mundo e uns com os outros. O fogo é o mais belo e terrível dos elementos. O fogo destruidor que tudo arrasa e destrói também é o fogo purificador que consome o que já não interessa para dar lugar ao novo. O fogo aquece o corpo e o espírito e cozinha os alimentos. Quando a humanidade vivia a visão xamânica do mundo era em redor do fogo que a vida era vivida. Aqui se comia, dançava, contavam-se histórias. Aqui se celebrava o mistério sagrado da existência. O homem, não como o opositor ou controlador ou a vítima da madrasta natureza, mas como parte integrante e fundamental da mesma. O homem como guardião.
Homens e mulheres de medicina abriram e fecharam este Boom. Aqui se sentaram, rezaram, pediram chuva, pediram paz. Daqui se segura o espaço do Boom, se garante que o caos seja criativo e não destrutivo, se inspira DJs e músicos a alquimiar o seu som, para que este se torne medicina e que permita a todos os homens, mulheres e crianças do festival que daqui saiam muito melhor do que entraram.