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Nirvana, Nevermind (Sinestesias)

Nirvana, Nevermind (Sinestesias)

Carlos Garcia

A inspiração por detrás da capa de “Nevermind” dos Nirvana reporta, supostamente, a um documentário que Kurt Cobain e Dave Grohl assistiram sobre partos na água. A técnica, usada para diminuir a dor e induzir o relaxamento, pode ser considerada como uma suavização da transição da protecção do útero para o mundo exterior.

O parto é apontado por várias tradições como o grande trauma da vida de qualquer ser humano (e se, como se diz em biologia, a embriogénese reflecte a epigénese, talvez de toda a espécie humana), em que após nove meses num ambiente de calor húmido e sonho embriónico, em que todas as suas necessidades se encontram supridas, o bebé vê-se face a uma atmosfera hostil e asfixiante. A passagem da bolha liquida intra uterina para a nova realidade seria, então, mediada por um espaço que mantivesse algumas das mesmas características, diminuindo o trauma, o grande trauma de viver num mundo que seria sempre sentido como hostil.

Este mitema, o da dolorosa passagem do canal, da expulsão do Éden materno (e o desejo de regresso ao paraíso), de um mundo frio e agressivo que esmaga a sensibilidade do espírito, será a grande narrativa recorrente da vida de Kurt Cobain. Será no álbum seguinte que esta vai ganhar um carácter mais assumido (com toda a sua imagética de úteros, fetos abortados, cordões umbilicais cortados, etc.), mas em “Nevermind” a temática do nascimento (e por corolário a da morte) já domina as ideias, as letras, o som, e, é claro, a imagética.

PEIXES

Será que para Cobain aquele bebé que flutua com uma descontracção aparente, é uma representação dele próprio? Uma encenação artística da sua vinda ao mundo? Ele próprio parodiaria a capa, deixando-se fotografar na mesma posição. Ou talvez seja mais correcto dizer que é uma reinterpretação, um revisionamento da experiência, de forma a diminuir retroactivamente o seu impacto. O impacto desconfortável que o mundo, com todos os seus ângulos agudos, sempre provocou em Kurt Cobain.

Nascido sobre a égide de peixes, no final de uma época que vive astrologicamente sobre a mesma regência, Cobain cumpriu na perfeição o papel que caracteriza o seu signo. A criança empática e sensível que vê o seu universo idealizado ruir com o divórcio dos pais, e respectivos segundos casamentos. O sentimento de exclusão nunca o abandonou e é a grande sombra que, simultaneamente, alimenta a sua criatividade e sabota a sua vida. Pessoal, como toda vida o é. O peixe no mundo é sempre o peixe fora de água. E o oxigénio queima os pulmões (Cobain sofria de bronquite crónica) com o mesmo ardor que ataca o estômago. E a auto medicação heroinómana foi, ao longo dos anos, a solução encontrada para uma somatização de uma dor que lhe corria da alma. Diz-se que no flash de heroína, o excluído volta a encontrar o grande calor liquido de que um dia se viu privado.

O regresso ao útero (throw down your umbilical noose, so I can climb right back) é um tema pessoal, mas também geracional. Afinal, do ponto vista dos céus, existem astros de movimento rápido e outros de curvatura lenta, e estes últimos tendem a lançar a sua longa sombra sobre uma geração inteira. Cobain foi tomado por quem chegava à adolescência no início dos anos noventa como, mais do que um ídolo ou líder, um símbolo. Símbolo de raiva, de não pertença, do rápido crescimento dos divórcios entre os baby boomers, da desintegração dos núcleos familiares, do falhanço de todas as utopias. Não o querendo ser em vida, acabou por sê-lo definitivamente na morte. Pois nada sela tão definitivamente a passagem para o mito quanto o óbito prematuro.

“Nevermind”, 1991. Um álbum que mudou a face do rock e catapultou a banda para o mainstream. Destronou Michael Jackson no primeiro posto das tabelas de vendas.

“Nevermind” e o seu bebé aparecem, assim, também como um parto geracional: todo um grupo etário, que se teria sempre sentido “nem isto nem aquilo”, crescido que foi nos anos oitenta, em que o superficial e o anódino foram elevados a modo de vida no pós moderno, encontrava agora uma identidade. Aquele bebé era todos nós e aquele era o nosso nascimento simbólico. Estava criada a identidade grupal adolescente para esta geração: a melodia pop casava com a fúria niilista do punk e a distorção das guitarras. De uma cidade obscura da costa oeste dos Estados Unidos (cuja característica mais marcante até então, se pensarmos que Hendrix lá nascido catapultou-se em Londres, seria o seu índice de pluviosidade) chegava a torrente que afogaria a angústia geracional num mar de flanela e mosh.

A resposta para esta pergunta será sempre sim e não. A criação é tantas vezes feita seguindo o instinto, agrupando-se um rol de associações que a mente consciente mal consegue enformar. É somente a posteriori que se olha para a nossa criação “frankensteiniana” e se lhe apreende (ou projecta) um sentido, uma temática, um subtexto.

No caso de Cobain, é bem possível que a combinação do seu treino artístico (para além da música, influenciado pela avó, sempre trabalhou com colagens) com uma habilidade natural para (pre)sentir o zeitgeist, o tornasse consciente, não só das temáticas em que estava a mexer como de todo o provir. Afinal, a criança da capa (que poderá ou não representar o próprio Cobain ou os destinatários da sua música, ou a condição humana de forma geral) não se encontra sozinha nas águas maternais: uma nota de um dólar flutua num anzol à sua frente, o isco que atrai o inocente para fora do liquido tépido. Out of the blue, into the black.

O mundo material, em todo o seu poder, esplendor e brilho, pisca o olho e atrai o peixe até si. Os Nirvana iriam, na porção de meses que medeia a concepção desta capa e o fim da digressão, entrar numa espiral vertiginosa de holofotes e riqueza. Só em retrospectiva se pode conceber o quão impactante foi o meteoro “Nevermind”. O underground passou a mainstream como numa inversão picaresca de valores. Centenas de bandas que nunca passariam das suas garagens tinham agora a possibilidade legitima de singrar na carreira. O culto mistérico do Pixies e dos Sonic Youth era agora uma religião de massas. E a geração do Boomers, que havia marcado as últimas três décadas do pop rock, tinha finalmente sido destronada.

Cobain dá a machadada final na já muito apodrecida árvore do big hair e big solos. Vindo de uma cultura lenhadora, é com a fúria destes que o frontman dos Nirvana mata simbolicamente os pais, que tanto contribuíram para o seu desenraizamento, e põe o pé no mundo. Os Nirvana acabavam de ser tragados para um centro de um imenso furacão, e os três rapazes do underground de Seattle iriam ser postos numa posição que só quem se encontra muito cheio de si costuma aguentar.

Há quem nasça com predisposição para ser estrela no firmamento, quem o sinta, inclusive, como direito de nascença e ocupe com naturalidade o seu lugar de direito. Mas poucos são as Madonnas e os Princes do mundo, estrelas naturais, com tanto brilho que não precisam de apelido. Novoselic e Grohl até possuiriam a combinação certa de bom humor e pragmatismo para desfrutar do furacão sem serem destruídos por ele. Cobain era feito de uma matéria diferente. E o muito humor que nele estava presente tinha pouco de bom: era corrosivo e ácido, a sua principal e última linha de defesa contra o assalto do mundo. O bebé prepara-se para agarrar a nota como um peixe morde o isco. Não sem estar isento dos riscos mas, talvez, com a esperança que no final daquela linha não esteja o pescador faminto, mas uma qualquer hipótese de redenção e transcendência.

ΙΧΘΥΣ

Cobain “flirtou” com o Cristianismo na sua adolescência e, apesar da sua natureza iconoclasta ser demasiado acentuada para algum dia ser um verdadeiro devoto, algo o atraiu para aquelas águas profundas. A religião (cujo fundador inaugura simbolicamente a era pisciana) que sempre teve como imagética as redes, os peixes e os pescadores. E como fundamento o tema da queda e da redenção. Cobain como figura Cristo que se deixa martirizar na grande cruz da exploração mediática da cultura de massas? O novo messias punk, que encerra em Seatlle a era que teve inicio em Nazaré? Lennon disse em tempos que os Beatles eram mais famosos que Cristo, uma afirmação que Cobain não desdenharia. Uma vez mais o humor vitriólico. Tal como Lennon, Cobain tinha uma grande boca e é certo e sabido que por esta morre o peixe.

Cedo ou tarde as objectivas do mundo mediático transformam-se em baionetas e os tubarões da impressa excitam-se com o cheiro de sangue. E alguém que, como Cobain, sabia tão bem sangrar em público e em palco, é um alvo fácil para o abate. Feridas emocionais a serem expostas, infância a ser psicoanalizada, casamento dissecado e escapelizado. A parceria com alguém tão danificado por viver fora de água como ele, mas com uma robustez muito maior, não terá sido a melhor das opções. De novo um parto, este bem concreto, e talvez a última hipótese redentiva. Sol de pouca dura. O rio cumpriu o seu curso. A luz dos holofotes secou toda a possível humidade e humanidade em volta, deixando apenas um deserto seco. Não existe uma pinga de água na aridez do Gólgota e esta só volta cair após se dar a última expiração. A forma como Cobain escolheu, no fim, deixar este mundo e esta vida foi violento e mediático. It’s better to burn out than to fade way. Talvez tenha sido sentido como a única forma de retorno às águas universais. Quando a intensidade e a exposição ao mundo se tornam demasiado dolorosos. E o espirito escolhe naturalmente o conforto lento da vida aquática.

Spencer Elden, o bébé que há  um quarto de século foi imortalizado tentando alcançar aquela nota, é agora um artista de rua. O ciclo continua no outro grande mitema do eterno retorno.

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