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Cave & Ellis em Paris: Depois da quarentena, a Felicidade

Cave & Ellis em Paris: Depois da quarentena, a Felicidade

Redacção

Pura Felicidade. É assim que Nick Cave descreve este regresso aos palcos para a digressão de “Carnage” e “Ghosteen” com o seu amigo, cúmplice e brilhante músico Warren Ellis. Juntos, com o multi-instrumentista Johnny Hostile e três soberbos backing singers – Wendi Rose, T. Jae Cole e Janet Ramus – oferecem-nos as canções dos dois últimos álbuns e uma ou outra mais antiga, numa performance intensa, esmagadora e incomparável. Não há datas em Portugal. Fomos a Paris.

“Ghosteen”, o primeiro álbum de Nick Cave inteiramente criado depois da morte do seu filho Arthur, com 15 anos – Ghost (fantasma) Teen (adolescente) é um título que claramente o referencia – seria apresentado numa digressão internacional que começava em Lisboa, no Altice Arena, a 19 de abril de 2020. Era o regresso aos pavilhões, aos estádios, aos concertos para milhares de pessoas. Depois da digressão de Skeleton Tree, que terminava com o público em palco e Cave a abraçar os fãs. Depois da Conversations Tour, uma espécie de talks sem rede, em que respondia às perguntas da audiência, uma a uma, e que o próprio definiu como “freewheeling adventures in intimacy”. Depois dos abraços, das conversas de coração aberto e ferida exposta, seria o regresso às massas. A digressão de “Ghosteen”, álbum-bálsamo para o luto, meditativo e terrivelmente maravilhoso, estranhamente, para as massas.

Mas veio uma pandemia. Fomos para casa. O mundo parou.

A digressão foi suspensa. Depois adiada. Depois cancelada.

Mas a criação nos espíritos inquietos não pára.
Como poderia?

Em Junho oferece-nos um concerto a solo – apenas Cave, o piano e uma iluminação primorosa – num Alexandra Palace (Londres) majestoso, belo e absolutamente Vazio… Ouvem-se os seus passos, o respirar, o sorriso quase pueril quando se engana na nota… Transmitido online para todo o mundo, em diferentes fusos horários e registado em filme e em disco, “Idiot Prayer – Nick Cave Alone at Alexandra Palace” traz-nos um Nick Cave confinado mas (re)centrado, que precisa do seu público para continuar. Ainda que do outro lado do ecrã.

Meses depois lança de surpresa um álbum de originais – “Carnage” – gravado em plena quarentena com Warren Ellis. Recebemo-lo em nossas casas no segundo confinamento português, corria Fevereiro de 2021. Ficamos esmagados. “We won’t get to anywhere, darling, anytime this year. We won’t get to anywhere, darling, unless I dream you there…”. É O disco da pandemia. Já em “Ghosteen” a participação de Ellis (com os Bad Seeds) fora determinante numa sonoridade mais atmosférica que agora se acentua. Em Carnage, a beleza é devastadora. E é neste momento único à escala planetária que Cave & Ellis assinam o seu primeiro álbum de estúdio (depois de várias bandas sonoras conjuntas por encomenda).

Finalmente, a digressão
Depois da Pandemia e ainda com ela. Com certificados covid à entrada e máscaras a atrapalhar as lágrimas. Já não será a digressão das arenas, com o público ao molho em plateias de pé. Essa nunca saberemos como seria, como estava pensada, como nos iria tocar. Ficará sempre e apenas com Nick Cave e os seus Bad Seeds.

Agora estamos de novo em salas mais pequenas, com “Ghosteen” mas também com “Carnage”. Com Warren Ellis mas sem os Bad Seeds. Inicialmente uma digressão apenas britânica, com 25 concertos por várias cidades do Reino Unido. Até que novas datas foram confirmadas pela Europa: Paris, Amsterdão, Antuérpia.

Fomos a Paris e testemunhámos a felicidade pura. A felicidade da partilha, da performance, da amizade comovente entre dois músicos geniais que viajam de novo juntos a fazerem aquilo que amam. Com o detalhe de um músico em palco que é francês – Johnny Hostile – e do australiano Warren Ellis viver em França há mais de 20 anos. O puro prazer de fazer a música acontecer com o conforto de quem está “em casa”. Ellis a traduzir as explicações de Cave – ou a reinterpretá-las para francês, vá – e o público a rir à gargalhada. A felicidade de uma linguagem comum, muito além da introspeção, da visceralidade e das emoções fortes.

E sim, Nick Cave está feliz. Ri e sorri como há muito não o víamos. Transborda amor em palco e para fora dele. Os temas que antes eram sofrimento e procura obsessiva de paz, agora são peças que encaixaram no tempo e encontraram o seu lugar. A intensidade continua lá, dispersa, mais leve. E a verdade, sempre a verdade, o escancarar dos recantos mais escondidos da alma. A generosidade. A transparência. A honestidade desarmante.

Um longo caminho para a paz
Começamos com “Spinning Song”, o tema que abre “Ghosteen” e reforça até à exaustão uma súplica que tenta ser esperança: “Peace will come in, peace will come in, peace will come in time… A time will come, a time will come, a time will come for us…”. Se as palavras foram escritas num processo de luto que tenta libertar-se da dor, este é também o tema que abre o álbum que era o último antes da pandemia. Agora, ao vivo, as palavras ganham novo sentido. A arte e os seus significados transmutam-se com as circunstâncias.

Segue-se “Bright Horses” – a canção-monumento que de imediato arrebatou os fãs quando o disco saiu – com Warren Ellis a cantar num falsete arrepiante, aqui acompanhado pelo coro, e Nick Cave a garantir: “My baby’s coming home now on the 5:30 train”.

Depois “Nigh Raid”, também de “Ghosteen”. “It’s a story that happens in the room 33 of a hotel in the french corner in New Orleans – Ça ce passe dans un hotel a Nouvelle Orleans, chambre trinte trois, a Nouvelle Orlean – And the entire song circles around a…- Il y a un bout de chanson qui se centre… Ça turne comme un turbillon, comme un turbillon, la melodie principelle… – It’s a happy song – C’est une chanson super hereux – But sounds like a sad song – En fait c’est triste”.

Pausa. Suspensão de olhares entre os dois, até que arrancam os primeiros acordes. E a solenidade instala-se.
Finalmente entramos em “Carnage”, com a canção que dá nome ao álbum. Mais uma vez os falsetes de Ellis suportados por aquelas três vozes que parecem 20. Obra monumental, litúrgica, qual cerimónia religiosa num qualquer templo de gospel. “And it’s only love, driving through the rain, rolling down the mountains, like a train…”. “Merci!”, agradece Cave, feliz!

Segue-se “White Elephant”, um dos hinos de “Carnage”. O primeiro momento de celebração absoluta naquela Salle Pleyel em Paris. Com todos os corações presentes a baterem síncronos e as palavras entoadas a uma só voz: “The time is coming!!! The time is nigh!!! For the kingdom in the sky!! Don’t ask who, don’t ask why!! There’s a kingdom in the sky!!”.

Depois, “Ghosteen” novamente, com o tema homónimo. E ainda “Lavender Fields” e “Waiting for You”. O espanto de um outro tempo, que se arrasta numa lentidão apaziguadora, uma dimensão em Cave que até então não sabíamos existir.

Mudamos de registo e passamos ao dilacerante “Skeleton Tree”, álbum que estava a ser gravado, em estúdio, quando Arthur morreu. Que estava já delineado quando esse acontecimento trágico invadiu a vida, a família e a arte de Cave, os seus músicos, os amigos, os fãs, o processo e, obviamente, o disco. “I Need You” é talvez um dos seus temas mais emblemáticos. Não se sabe exatamente o que estava escrito e o que não estava quando Arthur morreu. Mas é inevitável associar cada palavra, cada silêncio, a esse evento. Veja-se, a propósito, “One More Time With Feeling”, o filme de Andrew Dominik que documenta essa fase tão dura na vida de Cave. Não sabíamos como sobreviveria. Ao vivo a angústia continua lá, com as luzes a apagarem-se gradualmente até ficarem só em Cave que repete, incessantemente, “just breathe… just breathe… just breathe… just breathe…”. E é preciso respirar, de facto, quando termina (qual será o ‘click’ que o faz terminar?). Pára. Respira. Respiramos. Prosseguimos juntos. De volta à felicidade.

Segue-se a cover “Cosmic Dancer”, de T. Rex, que Cave já tocava sozinho na sua Conversations Tour. “Warren is going to play the violin, so get ready. It’s gonna be fuckin’ amazing. It’s gonna be so good”. E é! É sempre. Ellis funde-se com o violino quando toca. Contorce-se, ergue-se, cruza as pernas, pontapeia, roda sobre si próprio e volta a sentar-se. A metamorfose é extraordinária. O violino é um dos seus órgãos vitais.

Depois do arranque melódico, Cave faz uma pausa antes de começar a cantar. “This song is for that little boy, on the first row – uma criança de cerca de 12 anos – yeah, you. This is for you”. E começa: “I was dancing when I was twelve…”.

Prosseguimos para um álbum mais antigo – “No more shall we part” – com a ironia delicada de God is in the House. E depois da acalmia, a tempestuosa energia de sempre, a ferocidade arrebatadora que faz de Nick Cave o bicho de palco que domina multidões; que salta, corre e se atira ao ar para logo cair de joelhos no chão, agarrado ao microfone como se da sua vida se tratasse (e não trata?): “Hand of God”. E as mãos de Cave voltam a tocar as dos fãs!…

Shattered Ground; Galleon Ship; Balcony Man. Cave brinca com os espectadores no 1º e 2º balcão, pondo-os aos gritos sempre que canta “I’m the Balcony Man”… “You can scream and stuff… But only if you’re in the balcony”. Valha-nos o humor para aliviar a tensão. Primeiro falso final.

O encore começa com “Hollywood”, talvez o mais magistral registo de “Ghosteen”. Plateia já toda de pé, junto ao palco, alguns em cima dele. 14 minutos hipnotizantes que atravessam todos os estádios emocionais possíveis até à proclamação final: “It’s a long way to find peace of mind, peace of mind…”. Épico.

Intervalo para respirar. “Henry Lee” com a voz negra e profunda de Wendy Rose a cantar as palavras que nos habituámos a ouvir em PJ Harvey. Magnífica! É o segundo falso final.

Regresso ao palco para “Into my Arms”, a tal que não pode nunca faltar.

Por fim, “Ghosteen Speaks”.

It has no lyrics actually… It’s only ‘I am beside you’ and ‘Wait for me’, over and over again. You can sing with us”.

E o fantasma adolescente fala. Diz-nos que continua ao nosso lado. Diz-nos para esperarmos por ele.

Que o caminho é longo para encontrar a paz de espírito, não temos dúvidas. Passa pela humildade, pela conexão com a humanidade, por sermos fiéis a nós próprios, por não termos medo da fragilidade, pelo deslumbramento de estarmos vivos.

Nick Cave, arriscamos, está a fazer o caminho certo.