Quantcast

Sérgio Tréfaut: O Cante «é uma actividade natural dos Alentejanos»

Tiago Varzim

«Há um processo de orgulho e um processo de transformação de identidade em que algo que foi bastante desconsiderado passou a ser valorizado, e isso é muito importante», assegura, em entrevista à Arte Sonora, o realizador do documentário “Alentejo, Alentejo”.

Sérgio Tréfaut viveu de perto os momentos de preparação da candidatura do Cante Alentejano a Património Imaterial da Humanidade, pela UNESCO, ao ter realizado um filme promocional de 10 minutos, o “Cante”. A candidatura foi bem sucedida, mas Tréfaut garante que esta «não é suficiente para mudar o destino das pessoas». O que descobriu é que «os jovens, cantando juntos têm uma dinâmica de divertimento, de prazer próprio, que faz com que, de repente, haja muitos mais grupos». Na entrevista revela que há modas de tudo: até há «a moda da troika», diz entre risos.

Começa o documentário “Alentejo, Alentejo” com a música do Zeca Afonso: “Grândola, Vila Morena”. Há algum significado nessa decisão?
O “Grândola, Vila Morena” é a maior homenagem feita até hoje ao cante alentejano de fora do cante. O Zeca Afonso teve uma experiência em Grândola e fez uma canção em que, quando veio a ser orquestrada, em colaboração com o José Mário Branco, em Paris, transformaram aquilo numa moda alentejana. Hoje em dia, “Grândola” é cantada não apenas no 25 de Abril e nas manifestações, mas por todos os grupos corais alentejanos do 25 de Abril, principalmente, porque faz parte do repertório. Eu achei bem ter essa homenagem e, porque o filme tem também essa vertente muito clara de passar a palavra e homenagear muitas vezes aqueles que não a têm, a letra do “Grândola” adapta-se perfeitamente a algumas das minhas intenções no filme.

Cheguei à conclusão que para fazer as pessoas falarem com intimidade e verdade o melhor era colocá-las na cozinha a fazer uma açorda

Como foi o processo em que passa de uma curta-metragem de 10 minutos, o “Cante”, para um documentário de 1h30, o “Alentejo, Alentejo”?
Foi um processo caótico e foi um processo quase de revanche, na medida em que o filme de 10 minutos, que faz parte integrante da candidatura do Cante Alentejano a Património [Imaterial] da Humanidade, tem requisitos muito específicos: é obrigatório que pessoas dos cinco continentes percebam ou pelo menos acreditem que percebam algo do que é aquela música. Por isso, foi usado um voz-off, foi usado todo um lado narrativo em inglês, pouco cante… não é pouco cante. O cante é lento e demorado, então só podíamos usar trechos de modas e de os explicar pelo meio. Do ponto de vista do prazer, da fruição da música, fazer um filme informativo de 10 minutos é algo de frustrante. Não chamo aquilo um documentário, chamo aquilo um filme promocional.

O Cante existe ligado a todas as actividades do ciclo humano e percorre todos os grupos

Daí que, quando viesse a fazer um filme, tentasse fazer algo muito mais observacional. Pensei até que podia fazer apenas musical, mas depois percebi que lhe faltava o lado da palavra, do discurso. Não foi um processo fácil. Não tinha um conceito de filme definido antes de filmar. Fui descobrindo a maneira como ia compor o filme pouco a pouco. As primeiras conversas que filmei eram conversas onde o discurso televisivo, a fórmula de resposta, era muito marcado por entrevistas de telejornal, e foram todas para o lixo. Por isso, mais tarde, primeiro veio-me a ideia de intercalar momentos musicais com poetas populares (…) e, por outro lado, cheguei à conclusão que para fazer as pessoas falarem com intimidade e verdade o melhor era colocá-las na cozinha a fazer uma açorda. E a partir daí surgiu o motivo do filme. Foi assim que cheguei a uma estrutura de filme onde o cantar e o contar se alternam.

O que encontrou no terreno que o surpreendeu?
Na parte dos 10 minutos iniciais ainda não tinha bem a consciência dos grupos emergentes que foi uma coisa que surgiu mais tarde. Percebi que ao longo do processo de filmagens tinha acontecido outro processo em todo o Alentejo: o aparecimento e um novo amor pelo Cante das camadas mais jovens. Já existia cante nas escolas, mas isso não era uma garantia de grupos sustentados. Descobri para onde o filme caminha, descobri que filme é que estou a contar: sobre um perigo de morte iminente, de ameaça, mas com um final totalmente esperançoso e um futuro radioso. Não é um filme que tenha escrito no papel que vai daqui para aqui, mas tinha consciência de várias coisas. O Cante existe ligado a todas as actividades do ciclo humano e percorre todos os grupos: desde as crianças até aos idosos nos lares de 3ª idade.

Você pode ver pelo que aconteceu neste momento que calar alentejanos a cantar é horrível!

De que modo é que descobriu que toda a população, seja na sua cozinha, na agricultura ou noutro local, está envolvida no Cante mesmo que não seja de forma organizada?
O Cante evoluiu muito desde que é conhecido. E ele é conhecido desde há pouco tempo: ele é conhecido desde o século XX. Sabe-se perfeitamente que vem de raízes muito mais antigas, mas não há documentação. O Cante inicial que se conhece, com ou sem grupos, é Cante religioso ou de trabalho, ou seja, na monda ou no varejo… Existiam cantes de baile e existiam para todos os tipos de confraternização. E depois existem modas pesadas. E de taberna, como é óbvio. Pouco a pouco, toda essa coisa foi transformada pela aparecimento de grupos organizados nos anos 20 e, ao longo do século XX, o cante de taberna foi desaparecendo, o cante de trabalho deixou de fazer sentido porque o trabalho se mecanizou, não há monda, não há varejo, há máquinas para fazer tudo isso.

alentejo

Portanto, é um modo musical que no final do século XX, início do século XXI, estava num impasse. O Cante estava vivo ainda. Existiam 150 grupos há poucos anos atrás, mas estava num período de impasse. Como é que se sobrevive a um envelhecimento muito claro dos grupos? Agora com as novas tendências já não se põe esse problema. E o cante continua a ser cantado, como se ouve aqui atrás [a entrevista foi realizada no Culturgest na apresentação do documentário onde estavam reunidos vários grupos de Cante Alentejano, tendo um deles começado a cantar nesta altura] em qualquer convívio. Ou seja, é uma actividade natural dos Alentejanos de convívio.

[Sérgio Tréfaut interrompe a entrevista para fechar a porta da sala onde o Cante se começava a ouvir, para não perturbar o público do documentário]

Você pode ver pelo que aconteceu neste momento que calar alentejanos a cantar é horrível! [risos] Ou seja, em qualquer situação em que haja possibilidade de cantar, as pessoas cantam. Depois, existe uma forma mais teatralizada e formalizada a cantar em cima de um palco com microfones, o que normalmente é uma coisa horrorosa. Tudo isso é menos encantador do que ouvir a espontaneidade.

Quando esteve no terreno a fazer este documentário teve o receio de as pessoas não se reverem? Qual foi o feedback que recebeu depois?
Sempre fui recebido de coração aberto. Claro que quando uma pessoa acaba um trabalho pensa: «Como é que eles vão achar isto?» Devo dizer que o único receio que tive é que o grupo de Pias ficasse ferido, por ter apresentado uma situação em que no Terreiro do Paço, perante o “Grande Picnicão”, eles tinham sido humilhados. Mas aquilo foi muito importante uma vez que estamos do lado deles: eles são os nossos heróis. Para que o espectador também goste mais do Cante e compreenda a injustiça que lhes é feita pelos meios de comunicação habituais.

Para finalizar, à venda está não só o DVD de ‘Alentejo, Alentejo’, mas também um CD com “todas as modas do filme”, explica o realizador. “Inclui muitas outras modas que eu adorava, gostava muito, mas que já não cabiam no filme“, continua, referindo que gravou tudo nos lugares próprios, nada no estúdio. “É muito interessante: tem aquele vibrato, tem aquela vida, as risadas, as conversas, as explicações, tudo isso...”

Foto de entrada: © 2012 Guilherme Rodrigues