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A Surdina de Tó Trips

A Surdina de Tó Trips

Nero

“Surdina” é o novo álbum de Tó Trips, escrito como banda-sonora para o filme de Rodrigo Areias com o qual partilha o título. O guitarrista fala-nos de como se inspirou para abordar temas como a velhice, a solidão e o desaparecimento, de como gravou o álbum e da sua inseparável Epiphone Sorrento.

“Surdina”, uma «tragicomédia minhota» escrita por Valter Hugo Mãe, com realização de Rodrigo Areias e banda-sonora a cargo de Tó Trips, chegou aos cinemas nacionais a 9 de Julho. O filme teve a sua estreia mundial em Outubro passado, na 43.ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

A longa-metragem de ficção de Areias foi rodada em Guimarães, tendo como cenário um espaço rural, onde Isaque, um velho homem interpretado por António Durães, recebe a notícia de que a sua falecida mulher foi vista a fazer compras na feira. Revoltado, despeitado e triste, o velho homem pretende esconder-se de todos, mas os seus amigos insistem para que não dê ouvidos ao povo e que aproveite tal facto para se fortalecer e, quem sabe, casar-se de novo. Uma história sobre a delicadeza de se ser velho, do que resta ainda para sonhar e para amar quando a idade avança significativamente e o corpo se enfraquece.

Falámos com Tó Trips sobre a música que criou para o filme, que acabou editada em formato LP pela Revolve. Como convém em qualquer história, começámos pelo início, ainda antes do convite. Trips e Rodrigo Areias travaram conhecimento há vários anos. Através de Edgar Pêra. «Há muitos anos que tenho trabalhado com o Edgar Pêra. Aliás, o Edgar Pêra está na génese dos Dead Combo. Começou com o “Sudwestern”, o filme que ele fez no princípio deste século, em 2003. Foi aí que começaram as personagens dos Dead Combo. Quem produz os filmes do Edgar Pêra, já há uns anos, é o Rodrigo Areias, com a produtora Bando à Parte. Tenho feito cartazes para o Edgar e capas de discos para as bandas-sonoras da produtora do Rodrigo que, desta vez, convidou-me para fazer a banda-sonora».

Trips recebeu a primeira montagem do filme, pegou na guitarra, «componho sempre à guitarra», e iniciou a projecção, tocando instintivamente sobre a sua primeira visualização e gravando esse reflexo. Dessa primeira passagem podem ou não ser aproveitadas ideias e esboços de ambientes «e depois penso num tema que seja a base, quase o tema genérico do filme, e a partir daí faço o resto dos temas. Também penso um bocado no conceito, na abordagem do filme, na temática. Neste caso o lado da velhice, da solidão, mudar de vida já tardiamente».

TODOS CAMINHAMOS PARA LÁ

Produzido pela Bando à Parte, o filme conta no elenco com actores como António Durães, Ana Bustorff, Filomena Gigante, Jorge Mota, João Pedro Vaz ou Emília Silvestre, entre outros. Mas a escrever música. Como se finge a velhice, como se caracteriza essa ideia de solidão e de desgaste nos sons?

«Um gajo quanto mais envelhece mais vai pensando na velhice. Cabe a todos (a quem chegar lá). E eu sou um gajo que não vive bem com a velhice», admite Trips, evocando também o contacto familiar com essa realidade. Aquela sensação de impotência diante da physis, de ver os pais envelhecerem. «O meu pai vai fazer 83, a minha mãe tem 82, e vejo a condição em que eles estão, a velhice no lado físico, no deslocar, coisas em que o pessoal novo não pensa minimamente, só se tiver algum problema. Essas coisas, essas mazelas, essas faturas, vão aparecendo cada vez mais tarde».

Mas Trips foi também além da inevitabilidade biológica nesse retrato, afinal «a velhice também tem a ver com o desaparecimento de pessoas à tua volta, os amigos, e com o desaparecimento de uma certa… De um espaço que tu habitaste e que agora é diferente. Para te dar um exemplo, a Lisboa em que saía à noite todos os dias já não é a minha Lisboa… Tudo muda. Até na comunicação, tenho os meus três filhos e eles já usam termos que não entendo e são mais espertos para as tecnologias. Até nisso te afastas. As coisas mudam. E depois há uma coisa que já foi estudada, há explicações para isso. Quanto mais velho és, mais tens a noção do tempo passar mais depressa. Quando era puto, as férias grandes eram uma coisa que nunca mais acabava [risos]. Agora estás em Março e já estás em Agosto. Os anos passam tipo flecha».

Quando é este tipo de guitarradas, meio tugas, uso sempre a mesma guitarra. Tenho várias, mas uso sempre a mesma [risos]. (…) ofereceram-me uma réplica, mas mesmo assim uso sempre a mesma, que desafina bué e está mais velha. É um bocado a extensão de mim.

Foram essas reflexões a base de composição e aplicação de uma estética, na verdade, nada estranha da música do guitarrista. Daí o convite, naturalmente, para criar uma «banda-sonora que até foi um bocado de encontro ao que tenho muito na minha música ou na maneira de tocar guitarra. Esse lado mais nostálgico, meio solitário… Português. Por vezes assim tradicional, outras com um lado clássico e outras ainda de devaneio. E quando vi o filme, além da velhice e solidão, está associa muito à província, porque é Guimarães, mas nos arredores. Tem um lado popular. Foi por essas linhas que me guiei. Foi por isso que acrescentei um piano (compus em guitarra, mas passei a piano), um instrumento que tem esse lado mais clássico, mais conservador, vá lá, e passa esse lado mais nostálgico. Não foi uma banda-sonora em que eu saísse da minha caixa de conforto. Veio bater à minha porta».

OBJECTOS

A própria gravação do álbum, ainda antes deste mundo (espera-se circunstancial de distanciamento social), foi um processo solitário, quase totalmente feito em home studio. Além da guitarra, há esses elementos de piano, contrabaixo e aerofone. «Tudo composto na guitarra e depois feito no computador, com instrumentos de software. A masterização mandei fazer com o Quim [Joaquim Monte], no Namouche», refere Trips antes de confessar uma constante, a sua Epiphone Sorrento.

«Quando é este tipo de guitarradas, meio tugas, uso sempre a mesma guitarra. Tenho várias, mas uso sempre a mesma [risos]. Aliás, o Pedro Gonçalves e o pessoal todo dos Dead Combo juntaram-se e ofereceram-me uma réplica, mas mesmo assim uso sempre a mesma, que desafina bué e está mais velha. Tenho muito a cena de me afeiçoar a objectos, de fazer questão de ser aquela guitarra. É um bocado a extensão de mim, pronto. Acho que os objectos também ganham essa extensão do corpo, das pessoas que se lhes afeiçoam».

Esses escrúpulos são um traço de carácter do músico. Que não gosta de se desapegar dos instrumentos, use-os muito ou não. «Ainda guardo a minha segunda guitarra. A primeira, era uma Hondo dos anos 80, comprada num chinês dos Restauradores. Vendi-a. Depois comprei uma Fender Stratocaster, no final dos anos 80, e ainda a tenho. Trabalhei num café para a comprar. Esta guitarra que uso nos Dead Combo e a solo é como a guitarra que usava nos Lulu Blind, a Telecaster. São duas guitarras que associo muito a mim. Não sou adepto de vender guitarras, só vendi essa primeira. Mas essas duas, a Epiphone e a Tele americana, são duas guitarras que nunca venderia, que poderiam ficar aí penduradas numa parede da família, dois instrumentos que poderiam definir o pai».

Com as projecções do filme acompanhadas de performances ao vivo de Tó Trips, há no entanto outro objecto fundamental. Trips diz-nos qual e explica a sua intervenção a acompanhar as imagens na tela: «Só entro no sítio onde há música. Não é um filme mudo em que um gajo tem que estar sempre a tocar, mas o que vou fazer são versões só de guitarra,. Ao fim e ao cabo é quase o esqueleto da banda-sonora. Por exemplo, logo no “Tango Surdina”, levo uma loopstation, gravo um loop rítmico, depois faço o piano em guitarra e depois toco por cima uma melodia de guitarra mais tuga que o tema tem. Há alturas que toco mesmo só guitarra. Toco sempre guitarra [risos], mas faço-o com loops ou só a guitarra mesmo. Estas apresentações são uma versão à guitarra da banda-sonora».

Esse formato obrigou a mudar um pouco os hábitos. «Quando toco a solo, quando faço um disco, não gosto de ter loops. Gosto de tocar a cena só na guitarra. Só um gajo a tocar [como no álbum “Guitarra Makaka”], como os gajos do flamenco. Ao vivo até se podem fazer umas brincadeiras com os loops, mas prefiro tocar só. Não sou muito de tecnologia, pelo contrário. Os loops a mim só me ajudam para compor, por exemplo, cenas destas, para fazer uma frase em cima de um ritmo, para estar a experimentar antes de gravar. Já há uns anos que tenho a Infinity [Pigtronix]. Mas, lá está, aquilo tem tanta coisa que só sei o básico. Nem me meto lá a programar muito, a alterar o pitch, tira loop, mete loop… Não tenho estofo mental para isso».

O filme já foi apresentado ao público numa pequena digressão que passou pelo Cinema Trindade no Porto, dia 09, e dia 10 em Guimarães ,no Centro Cultural Vila Flor, com a banda sonora interpretada ao vivo por Tó Trips e a emergir em absoluto nas imagens e na narrativa de Rodrigo Areias. A tour de Cine-concertos seguirá dia 15 de Julho no Amoreiras (em Lisboa) e dia 16 de Julho em Aveiro, no Festival dos Canais. Depois seguirá por todo o país, em salas e dias a anunciar oportunamente.

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