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Zé Pedro, Apenas Um Rocker

Zé Pedro, Apenas Um Rocker

Nero
Daniel Mendonça

O músico mais marcante do rock português. Um apaixonado por música, em todas as suas expressões. Genuíno. Porreiro. Humilde. Os guitarristas portugueses prestam homenagem e contam histórias que viveram com Zé Pedro.

No dia 30 de Novembro de 2017, Zé Pedro morreu. Foi uma notícia que, embora não totalmente inesperada (na altura, sabia-se que o seu estado de saúde se deteriorara), ninguém queria receber. Com os seus Xutos & Pontapés, Zé Pedro elevou o estatuto do rock nacional e, à sua maneira (pun intended) tornou-se um guitar hero, quiçá o maior símbolo da guitarra eléctrica e do rock em Portugal. Além da sua música, a sua paixão pelo rock tornou-o uma figura preponderante na cena portuguesa, ajudando imensas bandas através de uma generosidade que sempre foi reconhecida e louvada por imensa gente.

Quando a AS se propôs a criar uma revista que celebra 10 dos melhores guitarristas portugueses da actualidade, um dos tópicos de conversa que se tornou inevitável foi o impacto de Zé Pedro em cada um dos músicos com quem falámos. No fundo, sabíamos que, de uma forma ou de outra, todos teriam histórias para partilhar relacionadas com o guitarrista dos Xutos. Para alguns foi um amigo próximo, para outros uma lenda.

E se nem todos o tiveram como uma influência directa no seu estilo de abordagem ao instrumento, todos confessaram uma profunda reverência por José Pedro Amaro dos Santos Reis.

Um herói na cultura do rock português – Ricardo Amorim

Como tão bem resumiu Ricardo Amorim, dos Moonspell: «Nunca olhei para o Zé Pedro como um Guitar Hero, aliás, acho que nunca ninguém olhou para o Zé Pedro como um Guitar Hero. Mas ele foi, de facto, um herói cultural. Um herói na cultura do rock português».

Amorim relembra o dia 30 de Novembro de 2017 e sintetiza os traços de uma personalidade que são reconhecidos por todos: «Ele faleceu um dia depois do meu filho ter nascido, estava com o miúdo ao colo e olhei para a televisão… Morreu o Zé Pedro. Não me surpreendeu, porque sabia-se já que ele não estava nada bem, mas é uma coisa que não deixa de ser um choque e custou-me a aceitar. Fiquei muito triste, porque não conheço uma pessoa que tenha alguma coisa a dizer de mal do Zé Pedro. Estive algumas vezes com ele, dávamos-mos, mas não éramos amigos – não ia a casa dele, ele não ia a minha casa, nunca telefonámos um ao outro para ir tomar um café. Cruzávamos-mos. E das poucas vezes que nos cruzámos, acabávamos sempre por ter boas conversas. Era boa pessoa, bem disposto para toda a gente. Não tinha um pingo de arrogância. E ver uma pessoa daquelas ir-se embora é duro, custa a aceitar.»

TÉCNICA ≠ VIRTUOSISMO

Zé Pedro não era um shredder mas, como tão bem refere Tó Trips, que tocou com o famigerado guitarrista em Ladrões do Tempo, entre outros projectos, «as influências não têm que ver só com técnicas e gajos a tocarem nas horas, as influências têm que ver com olhares e aquela pessoa ser algo como tu queres ser. Nisso o Zé sempre foi uma referência para mim antes de o conhecer. Queria ser como aquele gajo que estava ali a rebentar a tocar. E depois também existe uma outra coisa que o pessoal diz amiúde, que o Zé não é um grande guitarrista… O Zé tinha muitas vezes coisas minuciosas [de estrutura e riffing], dizia-nos “estão três vezes aqui, duas ali”, e ficávamos atónitos. Há coisas que o pessoal muitas vezes não dá muito valor e às quais o Zé era um gajo atento. Não fazia mais do que aquilo que deveria de ser feito. Isto é algo que o pessoal às vezes não valoriza. Enche-se aquilo de cenas, quando o que conta é a maneira como tu dás aquilo, e ele sabia fazer isso e sabia fazer muito bem. Mas pronto, o pessoal liga mais à cena das notas… Tudo bem, também é um valor.»

O Zé Pedro nunca deu uma nota a mais… É outro tipo de técnica – The Legendary Tigerman

Acima de tudo, Zé Pedro criou uma identidade sonora, na opinião de Trips, também partilhada por Paulo Furtado, o Legendary Tigerman: «O modo como o Zé Pedro tocava é uma cena muito especial dele e muito fixe, com a qual me identifico no sentido em que tecnicamente não sou um grande guitarrista, o Zé Pedro também não era tecnicamente um grande guitarrista, não há nenhum mal em dizer isso, sinto que não é uma ofensa e ele sabia disso. Refiro-me a um sentido virtuoso. Mas era um gajo com que  me identifico com uma cena: ele não dá uma nota a mais. O Zé Pedro nunca deu uma nota a mais… É outro tipo de técnica!»

Vasco Vaz aponta outro factor determinante na forma como foi influenciado pelo : «Mais do que os solos do Cabeleira, a cena dos dois guitarristas, a cena de banda foi sempre o que me puxou e aquela interacção entre eles e os jogos que eles faziam. Sempre achei que o Zé Pedro era muito pouco valorizado. É verdade que o que ele fazia não era nada de especial em termos técnicos, mas aquilo funcionava bem entre os dois. Para já, o Cabeleira é um grande guitarrista e tem um grande som, mas o papel do Zé Pedro, até o som dele que é um bocadinho diferente, faz o contraste. Funciona às mil maravilhas nos temas dos Xutos. Tu ouves muito bem isso no “Cerco”, precisamente, ou no “Circo de Feras”. Há coisas em que ainda hoje me inspiro, por causa desse interplay entre eles que é super engraçado. De facto, teres uma guitarra com som mais pujante e outra guitarra um bocadinho mais a rasgar, mas que depois em contexto de canção, faz todo o sentido. É isso que ele representa, para além da pessoa que ele era.»

A PESSOA QUE ELE ERA

As palavras de Vasco Vaz poderiam formar o início de qualquer eulogia, mas o “porreirismo” do Zé foi contagiante em vida. Como o guitarrista de Mundo Cão e Mão Morta evoca. «O Miguel Pedro costuma dizer que ele era das forças do bem e é verdade. Há poucas pessoas que são das forças do bem. Era uma pessoa que representava muito para mim, porque talvez tenha sido das primeiras bandas de que fui mesmo fã. E uma vez também me disse uma coisa que me emocionou, quando em Paredes de Coura me chamou e me disse: “Parabéns pelo teu trabalho, pelas tuas músicas, pelo trabalho de guitarras” – foi no “Pesadelo em Peluche”. Já o conhecia há muito tempo, mas é daquelas coisas que te fazem sentir bem». Sentimentos de admiração que são partilhados por Paulo Furtado.

Recorda o Tigerman que o Zé Pedro lhe «ensinou sempre demasiadas coisas e a maior parte delas têm a ver com humanidade e com carácter e com uma postura na música e menos a ver com música. A primeira tournée que fiz do “Naked Blues” ia acabando com o projecto, porque pensava que aquilo não ia funcionar nem para mim nem para o público. Na segunda, o Zé Pedro foi um baril do c*ralho e montamos uma cena juntos que tinha a ver com rock e rock n’ roll. Eu abria a noite com concerto e depois a noite continuava com o DJ Set do Zé Pedro. Fizemos umas 10 ou 15 datas pelo país. Naquele momento ninguém conhecia o Tigerman, ninguém fazia ideia do que aquilo era, mas como era uma coisa colada ao Zé Pedro e a toda esta ideia de uma noite qualquer de rock, as pessoas vieram e foi uma cena super fixe. E muita vezes durante a minha vida e durante a minha carreira, o Zé Pedro era sempre aquele gajo que ficava genuinamente feliz por qualquer coisa que te acontecesse de bom. Lembro-me que ele assinava a Rock & Folk e para ele era uma referência desde puto e quando vinha uma crítica ou uma entrevista minha era ele o primeiro gajo a ligar, super feliz por tudo isso. Foi o primeiro gajo a quem mandei o disco novo antes de sair, meses antes de sair, e era sempre alguém que adorava música. Identifico-me muito com ele. Sempre tive um respeito, uma admiração, pelo homem que ele era, e o músico está dentro deste homem que ele era, do que só músico.»

Olhar para o Zé Pedro, como uma pessoa que gosta de tanta música diferente, é o sinónimo da variedade, da liberdade e da cultura – Miguel Nicolau

Jorge Loura (Zen/Souq/47 de Fevereiro) lembra a simplicidade do músico. «Cruzei-me pela primeira vez com o Zé Pedro em ’94, num concerto dos Chip Chip Zan Zan. Tiveram ali um culto muito local, ainda tocaram umas vezes no Johnny Guitar, e quando fizeram um concerto especial no Teatro Aveirense, na altura de aniversário de dois anos, convidaram o pessoal de Xutos e foi o Zé Pedro e o Calú. Tinham vários convidados, incluindo eu. Por questões logísticas perguntaram se o Zé Pedro podia tocar com o meu material. Disse claro que sim, era uma honra! Lembro-me perfeitamente, aquela cena do Zé Pedro ir tocar com o meu material e quando o encontrei lá, a minha preocupação foi explicar “isto tem os botões assim, podes mexer à vontade” e ele a dizer “está tudo, é como estiver”, mas sempre com aquele sorriso mesmo boa onda, vamos é tocar e curtir.» 

Miguel Nicolau lembra: «Estive com ele algumas vezes, sem termos nenhuma relação de amizade. Admirava-o imenso e o percurso todo que ele teve. Coisas muito difíceis também, afinal viveu a pior altura de Portugal com a droga, em que ninguém sabia o que é que estava a fazer. Isso é uma realidade, falando com os meus amigos todos de Coimbra, que quase já não têm amigos dessa altura, porque foi tudo… E, de facto, ele passou por essa fase. Enquanto pessoa e músico, era espectacular! A questão é essa, estas atitudes podem ser muito pouco intencionais, mas passam na música que tu fazes, na atitude que tu tens, nos concertos que tu dás, na coolness que tu tens constantemente.»

Presença quase omnipresente até no underground, Zé Pedro cruzou-se com inúmeros músicos de várias gerações e as palavras repetem-se, evocando o quão genuíno era o , como se percebe no testemunho de Miguel Nicolau, de Memória de Peixe.

«O Zé Pedro não só faz parte de uma banda que todos conhecemos e que faz parte do nosso cancioneiro, da nossa memória, como também é a imagem de como a música deve ser. Porque temos esta parte toda complicada, mas estamos a falar de música, de arte, de viver a vida o melhor possível. O Zé Pedro representava isso… De sermos fixes, de sermos as melhores pessoas que conseguimos ser. Porque senão nada disto faz sentido, isto não é nenhuma competição, não é quem é que é melhor que o outro. Para os leitores pode ser importante a questão dos géneros, de perceber os géneros, mas esses géneros também nos podem limitar. E olhar para o Zé Pedro, como uma pessoa que gosta de tanta música diferente, com tantos programas de rádio que estás na boa a ouvir e percebes que era o Zé Pedro a mostrar bandas que tu nem imaginarias que ele pudesse gostar. É o sinónimo da variedade, da liberdade e da cultura, porque a cultura é isso!»

Miguel Fonseca (Bizarra Locomotiva) também assinala essa disponibilidade para as jovens bandas. «Foi ele que nos convidou para tocar no Johnny Guitar várias vezes; foi ele que nos levou a França, ao festival Printemps de Bourges, pela Antena Portuguesa; foi ele que nos escolheu. Era uma figura incontornável no Rock Português, que foi uma influência para mim, não tanto como guitarrista, mas como pessoa e como ícone do rock português. Todo ele era rock. Tive inclusive uma coluna que era dele, uma JCM 1960 que lhe comprei em segunda mão. Nem sabia que era dele, quando fui buscá-la era o estúdio dos Xutos. O Zé Pedro foi-se cruzando no nosso caminho também. Tocámos muita vezes com os Xutos, os Bizarra fizeram uma digressão com os Xutos, inclusivé, ganhámos um disco de platina com os Xutos, que eles próprios entregaram no palco, no Pavilhão Atlântico, na altura quando saiu “XX Anos XX Bandas”, fizemos a versão da “Se Me Amas”.»

A RITINHA ‘TÁ BEM?

Budda Guedes admite que os Xutos nunca foram uma grande referência para si, musicalmente. mas que sempre foram uma referência como entidade, pela sua postura, e como pessoas ainda mais.

E particularmente Zé Pedro «era absurdo, é daquelas cenas, podia ser um gajo nojento e um gajo normalmente têm tendência a falar bem dos mortos. Não é o caso, era um gajo fora do normal de afabilidade, de conhecimento musical, como melómano e como musicólogo era incrível. Era um gajo que sabia tudo, de todos os discos, quem gravou em todo o lado. Era o rockstar e depois a  sua postura do rockstar… Toquei várias vezes em concertos que os Xutos também tocavam e a cena deles com os fãs era inacreditável. Os gajos viam os fãs que lhes diziam “estivemos juntos em 83 na concentração tal” e eles respondiam “Pois é! E como é que ’tá a tua irmã, a Ritinha? ‘Tá bem?”. E ficava, como é que estes gajos se lembram? Era de uma dedicação às pessoas, aos fãs… E a postura do Zé era incrível! Sempre em todas, sempre a ouvir música, sempre em todos os eventos, a dar forças às bandas novas. Teres uma palavra do Zé Pedro, “altamente, gostei muito do vosso concerto”, que a ele não lhe custava nada, era uma gratificação brutal. Ele tinha esse cuidado e sabia disso e fazia isso, vi-o fazer isso com muita regularidade. Por isso é uma perda enorme. É um dos gajos que tenho muita pena que tinha ido porque representa… Era um bastião do rock nacional!»

LES PAUL CUSTOM c/BIGSBY

Poderia pensar-se em quantas diferenças separam o mundo de Zé Pedro e de Mário Delgado. Isto se não estivesse já exaustivamente repetida a noção de liberdade musical de Zé Pedro e a sua paixão pela música de todos os géneros. Ideias reiteradas pelo prolífico guitarrista jazz que relembra ainda como uma guitarra os uniu.

«Era super, super simpático e encontrava-o muitas vezes às vezes a ver concertos de jazz em que estava a tocar. Ele estava sempre muito aliciado por tudo o que era o mundo musical. Notava-se isso. Uma vez emprestou-me uma Les Paul. Na altura eu não conhecia o que era uma Les Paul e ele emprestou-me uma e tive-a cá uma data de tempo. Não me disse quando é que eu a tinha que entregar, claro que eu entreguei a guitarra, mas não havia nenhuma coisa de telefonema a dizer “Err… Mário, olha a guitarra…”. Eu é que tive de ir levar-lhe a guitarra. Isto apenas porque eu queria saber qual é que era o som, nunca tinha tocado muito tempo numa, e ele emprestou-me a guitarra. Foi antes do roubo. Era uma Les Paul Custom e tinha um Bigsby. O Bigsby não é jazzy. Aliás, porque é que foi feito o Bigsby? Para imitar o som das Lap Steel. As Lap Steel foram as primeiras guitarras eléctricas. A primeira guitarra eléctrica da Gibson era a ES-150, ES queria dizer Electric Spanish, que era como se distinguia das outras Lap Steel.»