Jethro Tull, A Arte e Inconveniência de Fazer o Que Se Quer
2022-02-18, Coliseu dos Recreios, LisboaIan Anderson liderou os Jethro Tull de forma moderada, mas firme. No regresso a Lisboa, 20 anos depois, há muitas coisas a pesar sobre a herança da banda, mas a capacidade de execução musical, como sempre sucedeu na sua história, permanece brilhante como pôde comprovar um Coliseu consideravelmente preenchido.
Maulana Jalaladim Maomé foi um poeta, jurista e teólogo sufi na Pérsia do século XIII. Os seus trabalhos estão englobados no movimento de renascença literária que teve lugar nos séculos anteriores desse vetusto império. Há um verso seu bastante popular que diz algo como «quando começas a caminhar, o caminho aparece».
Aparentemente, a poucos dias do concerto dos Jethro Tull no Coliseu de Lisboa, apenas “meia dúzia” de bilhetes estava vendida. A meio do que tem sido isto da cultura durante a pandemia, com o autêntico pandemónio provocado por agendamentos, cancelamentos e reagendamentos, mais as naturais inseguranças que cada um de nós agora irá enfrentar sozinho diante do progressivo regresso ao mundo pré-COVID, subsistia alguma desconfiança sobre a realização do concerto. Mas, tendo os Jethro Tull Anderson arrancado esta digressão no início de Fevereiro, em Itália, começou a trilhar-se um caminho que, de facto passou a existir. Assim, o Coliseu acabou por ter a sua lotação muito bem composta. Ian Anderson sempre fez aquilo que bem entende, mesmo depois de ter sido diagnosticado com uma pesarosa doença crónica.
Em Maio de 2020, Ian Anderson revelou sofrer de DPOC (Doença Pulmonar Obstructiva Crónica), patologia que lhe foi diagnosticada há um par de anos atrás. O carismático líder dos Jethro Tull fez a confissão no programa televisivo “The Big Interview”: «Tenho aquilo que se chamam agudizações – períodos em que uma infecção evolui para bronquite grave e posso passar por duas ou três semanas em que é muito duro subir a palco e actuar». Nessa ocasião, Anderson oscilava entre o optimismo e o pessimismo: «Fazendo figas, já passaram 18 meses sem qualquer agudização e prossigo a medicação. Se me mantiver num ambiente razoavelmente livre de poluição, no que respeita à qualidade do ar, passo bem. Todavia, os meus dias [como cantor] estão contados. Ainda não chegou ao ponto em que isto interfere na minha vida diária – ainda consigo correr para apanhar o autocarro».
O flautista do rock ‘n’ roll afirmava, resoluto, a sua intenção de continuar a combater a doença e de como o fazer: «Lutar até ao fim – continuar a usar tanto poder pulmonar quanto se consiga reunir e levá-lo ao limite em todos os momentos. No momento em que me acomodar e pensar ‘Já não consigo continuar’ é perigoso como uma ladeira. A resposta é continuar a forçar». A DPOC é uma doença que evolui para a diminuição da capacidade da captação de oxigénio nos pulmões. Anderson é peremptório a apontar a culpa: «Passei 50 anos da minha vida em palco, rodeado por essas coisas infernais que dão pelo nome de máquinas de fumo».
UM INÍCIO AUSPICIOSO
É aqui que chegamos à digressão The Prog Years e à sua passagem por Lisboa. Ian Anderson parece ter colocado os Tull na estrada porque é aquilo que mais gosta de fazer e cuja arte ainda permanece vigorosa. Máquinas de fumo nem vê-las! Naturalmente, além da doença junta-se a idade (são já 74 anos) e a sua voz está longe dos anos de glória, portanto é preciso protegê-la e preservar fôlego para o seu pulmão flautista que continua consideravelmente vigoroso. No concerto será tudo muito ponderado, seguindo um rigor espartano, para se atingir esse equilíbrio. Pois bem, para se fazer aquilo que nos apetece há sempre alguma inconveniências. Rumi disse que começando a caminhar o caminho aparecia, mas nunca disse que o caminho seria fácil.
Precisamente, a noite começou com “Nothing Is Easy”, do segundo álbum dos Tull, mas o primeiro em que começou a vincar-se mais o carácter musical absolutamente singular da banda, com o recurso a instrumentos menos usuais e a influência do lendário Roy Harper. Todavia, a formação vem algo despida. Além de Anderson, está David Goodier no baixo, John O’Hara nos teclados, Scott Hammond na bateria e Joe Parrish na guitarra. Cada um dos instrumentistas apresenta-se em solos na suite final deste primeiro tema. Com um ensemble bastante dentro do formato do prog rock clássico, Anderson vem com vontade de “rockar”. O entrosamento e sofisticação dos músicos é notável, como quase sempre foi nos Tull, e exemplarmente demonstrado em “Love Story” (esta sim, do primeiro álbum), com O’Hara a fazer no teclado – numa sintetização meio cravo – as vezes do piccolo cordofone de Anderson, que não larga a flauta. A partir daqui, de onde nos sentamos, o som de sala está magistralmente equilibrado. E logo surge o tema que recolheu a maior ovação da noite, aquele que, na altura, criou maior diatribe crítica e foi apontado como o primeiro disco claramente prog rock da banda, “Thick As A Brick”. Aqui Anderson alternou entre a flauta e a sua peculiar guitarra. Se estas coisas vos interessam, eis a sua história.
Na década de 70, Anderson começou a usar um compacto modelo parlour, uma Martin 0-16NY que comprou na sua primeira digressão no Japão, em 1972 – o ano de edição de “Thick As A Brick”. Nos anos 80, Anderson passou a usar modelos de Andrew Manson, um luthier inglês com oficina em Devon, que lhe construiu estas pequenas guitarras inspiradas na Martin. Trabalhando juntos conseguiram criar este híbrido de corpo tão compacto como ressonante. Soa como uma jumbo, mas é talvez a mais pequena parlour de sempre. A que está nesta digressão possui um tamanho parlour 3/4, com inspiração num design Francês com mais de século e meio – mas com pickups de transdução da Fishman.
A ERA DE AQUÁRIO
1969 teve início a uma quarta-feira, segundo o calendário gregoriano foi um ano comum (365 dias). Mas 1969 foi um ano intenso para a história nacional e mundial. E foi um ano determinante para a história em geral e para a história do rock em particular. O sismo de 1969 foi o último grande sismo a ocorrer no território continental português; as eleições legislativas deste ano foram as primeiras realizadas após a saída de António de Oliveira Salazar da Presidência do Conselho, o seu clima de aparente abertura política, designado por Primavera Marcelista; o Benfica foi Campeão Nacional e venceu a Taça de Portugal, num jogo disputado com a Associação Académica de Coimbra sob um enorme clima de tensão e receio de confrontos – os estudantes universitários estavam em confronto aberto contra o Estado Novo e, pela primeira vez na história, o Presidente (Américo Thomaz) e o Ministro da Educação (José Hermano Saraiva) não assistem ao jogo no estádio, e este não foi transmitido na televisão -a equipa do Benfica, solidária com os estudantes, entrou no campo de capa caída e batina ao ombro.
Richard Nixon tomou posse como Presidente dos Estados Unidos, ao mesmo tempo que o país protestava contra o Conflito no Vietname e contra o racismo, que havia vitimado no ano anterior o reverendo Martin Luther King Jr.; Neil Armstrong tornou-se no primeiro ser humano a pisar solo lunar; a ARPANET transmitiu a sua primeira mensagem, naquilo que foi o nascimento da Internet; a infame Família Manson cometeu os seus macabros massacres, colocando um final espiritual aos ideais do Verão do Amor; em Nova Iorque, a Rebelião de Stonewall solidificou, de vez, os movimentos sociais em defesa dos Direitos LGBT. Foi o ano do Woodstock, onde Hendrix dinamitou o “Star Spangled Banner”; em Altamont, num concerto dos Rolling Stones, os Hells Angels (contratados para fazer a segurança do evento, assassinaram um fã); foi o ano em que os King Crimson se estrearam com o álbum “In The Court Of The Crimson King”, inaugurando o prog rock; foi o ano em que os Beatles deram o seu último concerto e John Lennon anunciou a sua saída da banda; foi o ano em que os Stooges se estrearam através do seu álbum homónimo e Elvis Presley regressou aos concertos, nos fabulosos concertos no International Hotel, em Las Vegas.
E foi o ano em que, aproveitando duas décadas de evolução tecnológica e a tradição do Delta Blues e dos pioneiros do rock ‘n’ roll, os Led Zeppelin, através de dois álbuns fenomenais, fundaram o hard rock. Todos somos marcados pela esperança da Era de Aquário e por esse ano inesquecível que os Jethro Tull, regressando ao álbum “Stand Up”, revisitam no compasso composto de “Living In The Past”.
MONTANHA-RUSSA
“Hunt By Numbers” evoca o último álbum totalmente preenchido de originais dos Jethro Tull (até ter surgido “The Zealot Gene” já este ano), o incaracterístico “J-Tull Dot Com”. A Anderson, apetece-lhe andar novamente em tour com os Jethro Tull, mas Martin Barre não lhe perdoa a decisão de ter separado a banda em 2012 e não tornou a juntar-se ao seu velho companheiro. Por isso, num tema com riffs tão demarcados como este, sobressai a sua ausência, a falta da sua mão pesada e do seu carácter algo rudimentar. Joe Parrish é um guitarrista mais refinado, mas falta-lhe alguma densidade, aquele som granuloso de Barre. Esse contraste é esbatido no mais instrumentalmente preenchido e interligado regresso a “Stand Up” e às mais tradicionais idiossincrasias e divertido pretensiosismo dos arranjos de Anderson, através de “Bourée”. Diga-se que executar Bach é o cabo dos trabalhos, creio que não haverá músico que não concorde com isso. Ora bem, fazê-lo (até acapella em alguns momentos) no baixo com o dinamismo de David Goodier é obra!
Propulsiva, carregada de contrastes dinâmicos e preenchida por detalhes melódicos numa furiosa interpretação instrumental. Depois da sequência de abertura, a execução de “The Clasp” foi um dos grandes momentos da noite.
No crepúsculo da primeira parte do concerto estamos no seu mais vibrante clímax de virtuosismo, como provam as harmonizadas melodias de flauta e guitarra, misturadas com as síncopes rítmicas de “Black Sunday”, que nos leva a “A”, o álbum de 1980. Antes da saída da banda para intervalo, aí estava ela. A música favorita na discografia dos Tull deste que vos escreve. Não dará para esconder muito bem uma certa desilusão com os novos arranjos de pianos, com os seus pads de sintetização algo pífios, os novos arranjos demasiado adocicados, em comparação com o poder cru do original, e a sacrílega mutilação da segunda metade do tema… Falando em preferências pessoais, a segunda metade do concerto abre com “The Clasp”, tema de cruzamento de sintetização, instrumentação electrónica e o folk clássico dos Tull, os baluartes estéticos do meu favorito dos álbuns proscritos: “The Broadsword And The Beast”. A sério, já tiveram o vinil nas mãos e a sua deslumbrante capa com o Goblin Anderson? Por algum motivo, a maioria da crítica e dos fãs não aprecia muito este disco. Sem querer soar prepotente, a execução de “The Clasp” é demonstrativa de que apreciá-lo depende bastante da atenção que lhe é dada. Propulsiva, carregada de contrastes dinâmicos e preenchida por detalhes melódicos numa furiosa interpretação instrumental. Depois da sequência de abertura, foi um dos grandes momentos da noite.
Curtir o “Broadsword…” é uma coisa, mas pedir aos fãs para ouvir mais um tema de “Dot Com” talvez seja demasiado. É certo que “Wicked Windows” manteve tudo muito sofisticado, mas também bastante morno. Nem de propósito, segue-se “The Zealot Gene” (tema que empresta título ao novo álbum) e que é, basicamente, Anderson a dizer que se está marimbando para opiniões como a minha. Como há muito que conquistou o direito de fazer o que muito bem entende, segue-se uma versão do álbum de Natal dos Tull. Enfim… Estes pequenos inconvenientes.
CHEERIO
Felizmente, logo de seguida, mostra precisamente porque pode fazer o que lhe dá na real gana, com o clássico folk e neo barroco que é “Songs From the Wood” e depois a antémica “Aqualung”, introduzida com pomposa uma jam instrumental que percorre resumidamente as estruturas desse tema clássico, antes de ser executada padronizadamente. E porque esse álbum permanece como o magnum opus dos Jethro Tull, a tradição manda que “Locomotive Breath” encerre o concerto, colada com “The Dambusters March”, como era costume na digressão norte-americana de 1978. Um final em grande. “Cheerio” encerrou as festividades.
P.S.: Não fazia reportagem a um grande concerto para a AS desde que os Dream Theater passaram com a digressão “Distance Over Time” no Campo Pequeno, no dia 02 de Fevereiro de 2020. Dois anos depois, que as palavras do grande poeta Rumi se tornem proféticas…
SETLIST
- Nothing Is Easy
Love Story
Thick as a Brick
Living in the Past
Hunt by Numbers
Bourrée in E minor
Black Sunday
My God
The Clasp
Wicked Windows
The Zealot Gene
Pavane in F-Sharp Minor
Songs From the Wood
Aqualung
Locomotive Breath
The Dambusters March