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Paradise Lost, Brasas de Fogo Vivo

Paradise Lost, Brasas de Fogo Vivo

2023-12-16, Sala Tejo, Lisboa
Nero
Joana Cardoso
7
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A meio de um som infernalmente caótico, os Paradise Lost mostraram integralmente “Icon” a Lisboa. Mais que mera nostalgia, o concerto provou que estão intactos todos os pressupostos estéticos, com o protagonismo da poética melancolia das guitarras de Mackintosh e Aedy, que tornaram o álbum um dos maiores clássicos do heavy metal. Esta é uma crónica de um fã.

Em Fevereiro de 1993 chegou “Serenades”, dos Anathema. Em Setembro,“Icon”, dos Paradise Lost. E em Outubro desse mesmo ano chegou “Turn Loose The Swans”, dos My Dying Bride. Nos anos imediatamente anteriores ou posteriores, cada uma das bandas teve outros trabalhos de impacto e influência semelhantes, mas há 30 anos atrás, essas obras-primas foram uma tempestade perfeita, que varreu o submundo da música pesada e estabeleceu o reino do triunvirato do Doom Metal britânico.

No caso dos Paradise Lost, tudo isto é mais evidente. Depois do tubo de ensaio que fora “Gothic”, o quintessencial álbum de 1991 que determinou uma nova sonoridade no death doom, a banda deixou a Peaceville e assinou com a Music For Nations que, sob a alçada da Zomba Records (e mais tarde da BMG, até chegar à Sony), era uma antecâmara para o mundo das major labels. Então, logo em 1992, com o dedo de Simon Efemey na produção, no EP “As I Die” e no LP “Shades Of God”, Nick Holmes começou a ampliar o efeito dramático da sua voz para lá dos monocromáticos guturais do death metal, usando-a com maior intenção sobre a melodia das guitarras de Gregor Mackintosh. A fusão do death doom, com a propulsividade rítmica dos Sisters Of Mercy e a pungência melódica dos Joy Division, foram culminadas na obra-prima: “Icon”.

Depois de, no início do Junho, terem anunciado as duas primeiras datas da ‘Embers Of Europe Tour 2023’, os britânicos Paradise Lost divulgaram no mês seguinte o itinerário completo da digressão que, durante este Outono, os colocaria numa longa viagem pelo Velho Continente para uma série de actuações a comemorar o 30.º aniversário do incontornável “Icon”, na sequência da revelação recente de que a banda liderada por Nick Holmes e Gregor Mackintosh decidira regravar o clássico de 1993 (por não ser detentora das master tapes que permitisse um acordo de reedição/remistura) para uma edição especial com o selo da Nuclear Blast Records.

Portugal foi um dos países eleitos para a digressão e no dia 16 de Dezembro de 2023, em data única na Sala Tejo da Altice Arena, em Lisboa, os Paradise Lost apresentaram-se diante de lotação esgotada. Antes de abordar o concerto, resta um disclaimer de quem vos escreve. Esse ano de ’93 foi o meu «summer of ’69».

Estava a entrar na adolescência e comprei uma guitarra, uma Jackson com a cabeça invertida, porque era o que me parecia ser aquela imponente Haigh Custom preta que o Gregor Mackintosh usava. O meu professor de guitarra devotava-se a ensinar-me malhas dos Metallica e a infundir-me os Death no meu âmago musical. Os meus discos favoritos eram os do Randy Rhoads e do Eddie Van Halen, mas foi a fazer play along com o “Icon” que mais horas passei com o instrumento. Isto para dizer que, esta reportagem nunca teve qualquer hipótese de sobreviver ao filtro do “profissionalismo”. O “Icon” é um dos discos da minha vida.

ÍCONE

Uma das coisas que mais se ouvia nas conversas na plateia era acerca do caótico som que serviu este concerto. Algo que, pelo menos no início, também deve ter afectado a mistura de palco, porque os Paradise Lost tiveram uma prestação algo desastrada em “Embers Fire”. Todavia, o magnetismo daquelas imponentemente harmónicas cordas que servem de introdução e o poder emocional dos riffs do tema, rapidamente determinaram o ambiente do concerto. A plateia vociferava o icónico refrão: «Don’t run away, from the pain, a claim that you deal with; a power game, from within, Impossible for you to see this». Se a banda não arrancou no seu melhor, a força da sua obra impôs-se naturalmente, alastrando rapidamente das primeiras filas junto às barreiras de segurança, diante do palco, até ao fundo da sala.

Seguindo a ordem estabelecida no álbum, “Rememberance” soou no seu melhor. É uma canção quase pop. Claro, “Embers Fire” e, principalmente, “True Belief” sempre foram as malhas mais celebradas deste disco, mas o segundo tema do “Icon” permanece como uma das mais vibrantes malhas dos Paradise Lost e, talvez por ter tido menos exposição ao longo das décadas, um dos mais vigorosos exemplos dessa fusão entre o submundo do peso sónico e a densidade emocional do pós-punk. Talvez pensem que esta associação é um salto demasiado largo, nesse caso talvez devam ponderar sobre a quase dançável “Dying Freedom”.

Se nos remetermos apenas ao doom metal, “Joys Of Emptiness” é uma das melhores malhas de sempre do género e a execução da banda terá estado no seu zénite nesse momento.

Antes, todavia, foi a vez de “Forging Sympathy”, composição de Aaron Aedy que não se ouvia ao vivo desde a digressão original de promoção a “Icon”, em 1994. Um retrato da força galopante dos palm mutes de Aedy que, tanto como os crescendos e os decrescendos de Mackintosh, estabeleceram o carácter estético dos Paradise Lost. “Joys Of Emptiness” é apenas mais um exemplo de uma malha que os britânicos nunca deveriam ter remetido para o fundo do seu catálogo quanto decidem os alinhamentos das suas digressões. Guitarras em harmonizações de imensurável melancolia, uma atmosfera extraída de um horror gótico victoriano e o sofrimento contemplativo das vozes de Holmes. Se nos remetermos apenas ao doom metal, esta é uma das melhores malhas de sempre do género e a execução da banda terá estado no seu zénite nesse momento.

Voltando à ordem do disco e do alinhamento, “Widow” foi favorecida pela predominância da guitarra de Mackintosh na mistura que o PA debitava, talvez porque os leads de guitarra são feitos em notas mais graves na escala ou porque, no solo (explosivo) o wah wah tenha acabado por actuar como um boost. Isto porque em “Colossal Rains”, o pântano de médios tinha alastrado a toda a sala, enrolando voz, baixo e bateria e colocando tudo à beira da cacofonia. “Weeping Words” e “Poison” são duas malhas que, salvo erro, nunca tinham tido honras de palco. Todavia, Lisboa já só aguardava devotar-se diante de uma das mais majestosas malhas no cancioneiro death doom…

Além do seu título, aquela atmosfera de victoriano gótico remete-nos para uma hierofania de culto religioso, de naves escuras e vitrais com hagiografias de sofrimento e de dor. Tudo isto é transposto magistralmente nas melodias de Mackintosh. O refrão («All I want is the same; All I want is; A true belief; A true belief»), fervorosamente entoado pela plateia, conjugado com aquela como que quarta harmonia de Nick Holmes, que reforça o carácter monástico do tema… Foi o momento mais alto da noite, como se esperava.

Os salientes breakdowns de “Shallow Seasons” passaram quase despercebidos após tão intenso momento no concerto. E a encerrar tudo, “Christendom”. Um tema como nenhum outro dos Paradise Lost, que também só ganhou honras de palco nesta ‘Embers Of Europe Tour 2023’, mas que a banda teve dificuldade em reproduzir ao vivo, talvez porque não conseguiu colar-se bem com os samples de sintetização e da angelical voz feminina.

A nostalgia estava saciada, mesmo que o encore ainda a presenteasse com “Sweetness”, malha do EP “Seals The Sense” que, este escriba, nunca tinha ouvido tocada ao vivo. De qualquer forma, mais que nostalgia foi perceber a vitalidade das malhas de “Icon” e redescobrir a sua influência no death doom, mesmo após três décadas. Logo de seguida, o clássico “Pity The Sadness” recebeu enorme aclamação, principalmente em relação às mais recentes “No Hope In Sight”, cuja toada pareceu apropriada ao propósito desta noite, e “Ghosts”, que foi completamente descabida.

O MAR PESSOANO

“Pirate’s Curse”, “Haunted Sea”, “Gods Of Babylon”, “Seventh” e “Saudade”. A colecção de malhas do álbum de estreia dos Seventh Storm, fez showcase do desdobramento estético da banda de Mike Gaspar. O som não favoreceu as nuances de arranjos da banda, em particular de um tema como “Pirate’s Curse”, cuja riqueza harmónica se viu engolida pela confusão sónica que ecoava na Sala Tejo. Em seu abono, o grupo nunca pareceu hesitante com as adversidades – nem com o facto de o PA ter ido “abaixo” um par de vezes durante a primeira metade do seu alinhamento. “Haunted Sea”, pelo seu arranque mais directo e com a condução rocker de bombo e tarola de Mike Gaspar, serviu mesmo para os Seventh Storm ganharem confiança para o seu magnum opus

As mitologias e as civilizações antigas sempre foram das águas de riqueza abundante para as bandas de heavy metal lançarem as suas redes. É aí em que se enquadra um tema como “Gods Of Babylon”, com a sua introdução médio-oriental, os riffs baritonais e uma pesada fusão de prog metal e blast beats. A calorosa voz de Rez (Marco Resende) a servir de guia a uma viagem exótica, com a atractiva miscelânia de diferentes modos de escalas dos guitarristas Josh Riot e Ben Stockwell. É um dos grandes triunfos do álbum de estreia dos Seventh Storm e, mesmo mutilado de muito do seu corpo harmónico, soou nas horas, como se numa versão mais crua. A encerrar um concerto “curto e grosso”, naturalmente essa canção que se tornou um clássico imediato, “Saudade”.

Um tema em que Mike «queria uma canção que falasse às pessoas que se preocupam e amam a nossa pátria», referindo ainda «o amor pelos nossos pais. A memória daqueles que perdemos e de que sentimos tanta falta. Este sentimento de que alguns amigos ou familiares ainda continuam ao nosso lado, a guiar-nos e dar-nos uma direcção. Uma pessoa em quem pensei muito foi no Peter Steele. Era um fantástico ser humano a ser um bom amigo. Um gigante gentil. Senti realmente que ele me estava a empurrar para fazer o que me estava destinado. Era um grande fã da cultura portuguesa e, claro, do nosso vinho».

Tornou-se uma trend, o viking metal, mas os Seventh Storm deixam claro que o povo português (e por favor, isto não tem qualquer conotação fascista e nacionalista) tem raízes profundas, que remontam aos lusitanos, e tem n’Os Lusíadas a sua própria epopeia – quase como um Kalevala.

SETLIST

  • Deus Misereatur
    Embers Fire
    Remembrance
    Forging Sympathy
    Joys of the Emptiness
    Dying Freedom
    Widow
    Colossal Rains
    Weeping Words
    Poison
    True Belief
    Shallow Seasons
    Christendom
    Sweetness
    Pity the Sadness
    No Hope in Sight
    Ghosts