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Direitos (e Deveres) dos Artistas em Portugal – Parte 3

Direitos (e Deveres) dos Artistas em Portugal – Parte 3

Nuno Sarafa

Terceira e última parte do compêndio dos direitos e deveres dos artistas em Portugal concentra-se na gestão e cobrança dos direitos de autor e dos direitos conexos aos direitos de autor e ainda nos financiamentos à criação artística.

Depois de analisarmos ao pormenor o novo Estatuto do Profissional da Cultura e de darmos especial atenção às cooperativas, associações ou entidades que auxiliam os artistas e profissionais do sector das Artes e Espectáculos em sede fiscal e não só, é chegada a vez de encerrarmos este artigo dividido em três com algumas linhas dedicadas aos direitos de autor, aos direitos conexos aos direitos de autor e ainda aos sistemas de apoio e financiamento à criação artística. Outras áreas determinantes na actividade artística, mas que suscitam, igualmente, muitas dúvidas.

Em primeiro lugar, importa definir cada um destes direitos. Comecemos pelo Direito de Autor, que é o ramo do Direito que regula a protecção das obras intelectuais e que se traduz num conjunto de autorizações de utilização das obras, reservadas ao autor ou a terceiro detentor dos direitos (por exemplo, os herdeiros).

O direito de autor pertence, assim, ao criador intelectual da obra, a menos que haja disposição expressa em contrário e é reconhecido independentemente do registo, depósito ou qualquer outra formalidade.

Segundo os termos do Código de Direito de Autor, a compra de um trabalho protegido por direitos de autor não dá o direito de o transmitir ou copiar. Mesmo no uso privado, este nunca deverá atingir a exploração normal da obra, nem causar prejuízo injustificado dos interesses legítimos do autor.

Em Portugal, a gestão, cobrança e distribuição dos direitos de autor é feita pela SPA (Sociedade Portuguesa de Autores), uma cooperativa de responsabilidade limitada fundada em 1925 e na qual estão representados cerca de 21 000 autores, pertencentes às várias áreas criativas. O trabalho da SPA passa por garantir que os autores são remunerados pela utilização e reprodução das suas obras, tanto em Portugal como em qualquer parte do Mundo (através das suas congéneres).

Quanto aos Direitos Conexos aos Direitos de Autor, sempre que, por exemplo, música gravada seja utilizada por qualquer forma de comunicação pública (televisão, rádio, discotecas, cafés, bares, restaurantes, lojas ou qualquer outro lugar público), o artista intérprete ou executante e o produtor de fonogramas têm direito a uma remuneração, remuneração essa que deve ser proporcional ao benefício que o utilizador retira do uso da música gravada.

Finalmente, traçando as diferenças entre direitos de autor e direitos conexos, refira-se que os beneficiários dos direitos de autor são os autores ou criadores de determinada obra, bem como os detentores dos direitos, como é o caso dos herdeiros. Já os beneficiários dos direitos conexos são, no caso da música, os artistas intérpretes ou executantes e os produtores das gravações. Ou seja, quem fizer utilização pública de uma canção tem de pagar duas remunerações: a de autor e a conexa. Se o autor for também o intérprete, então recebe duas remunerações, uma por cada trabalho (o trabalho de criar e o de interpretar).

No nosso país, a Passmúsica era, até ao início deste ano, a marca que identificava o serviço de licenciamento conjunto da GDA (Cooperativa de Gestão dos Direitos dos Artistas Intérpretes ou Executantes) e da Audiogest (Associação para a Gestão e Distribuição de Direitos dos Produtores) para a cobrança de comunicação pública, em particular da música gravada utilizada em espaços públicos ou abertos ao público.

A Passmúsica cobrava, em nome da GDA (cooperativa nascida em 1995 como resultado da fusão da CADA – Cooperativa de Administração dos Direitos dos Artistas com a APA – Associação Portuguesa de Actores) e da Audiogest (associação registada como Entidade de Gestão Colectiva de Direitos dos Produtores Fonográficos), os direitos conexos pela utilização de música gravada, com o dinheiro a ser dividido em duas partes: metade para os intérpretes ou executantes (cantores ou músicos), e a outra metade para os produtores (editoras discográficas).

Recentemente, houve algumas alterações ao modelo de gestão do licenciamento conjunto de direitos de artistas e produtores, divulgadas a 12 de Janeiro de 2022, mas que em nada alteram do ponto de vista da relação com os utilizadores de fonogramas (gravações musicais) e vídeos musicais.

Para melhor enquadramos este artigo, entrevistámos um autor da área da música e ainda Pedro Campos, Administrador da SPA – também convidámos a GDA para a conversa, mas, até à hora do fecho deste artigo, não recebemos qualquer resposta daquela entidade.

Pese embora a informação disponível, não são poucos os autores e intérpretes ou executantes que admitem ter dúvidas sobre a gestão e cobrança destes direitos, manifestando algum desconhecimento e, até, em certos casos, uma ligeira desconfiança sobre a forma como são apurados os rendimentos a distribuir. Na origem da dúvida reside o digital, que não só veio para ficar, como é, simultaneamente, um enorme problema de falta de justiça. 

A informação não é muito transparente (…) é preciso tirar um curso para entender estas questões

Inscrito na GDA desde 2012 e na SPA desde 2016, o compositor, guitarrista e vocalista João Firmino, o rosto mais visível dos Cassete Pirata, diz-se, em entrevista à Arte Sonora, globalmente satisfeito com o trabalho das duas instituições, mas aponta algumas lacunas no sistema de monitorização, destacando ainda a pouca transparência em que todo o processo está envolto e o paradigma pouco favorável do advento – no que toca aos rendimentos dos autores – das plataformas de streaming.

Consideras transparentes os processos de gestão, cobrança e distribuição de direitos em Portugal?
Acho que não são muito transparentes. Não é só culpa das entidades. É preciso melhor tecnologia, porque o processo ainda é um bocado opaco. Temos de confiar numa série de instituições. Eles têm o software, nós não. E por isso temos de acreditar nos relatórios que nos são fornecidos. Para termos a certeza absoluta, seria preciso fazer um escrutínio ou double checking, e isso não é, obviamente, sustentável. Acho que há muito dinheiro que ainda fica por reclamar. A minha experiência é relativamente recente e no início fiquei com a sensação de que o processo não é muito claro. Vamos entendendo melhor as coisas ao falarmos com pessoas, com amigos que também estão inscritos, mas não devia ser assim. Embora reconheça o esforço, inclusivamente agora até há uma aplicação que nos vai informando sobre tudo, às vezes sinto que é preciso tirar um curso para entender estas questões.

Tens dúvidas sobre os direitos de autor e os direitos conexos aos direitos de autor?
Sim. Sobre direitos de autor vou tendo menos, mas sobre direitos conexos tenho alguns. Ainda não percebo todas as situações em que são gerados rendimentos. Principalmente a partir das plataformas de streaming. Tento declarar sempre tudo na hora, mas a informação que é passada aos autores não é muito transparente. Nada aqui é didáctico. Há uma grande falta de noção. Para um miúdo de 16 anos que comece a fazer as suas canções, o processo não é obvio… Ainda assim, a era digital simplificou as coisas, mas ainda há uns quilómetros a fazer. Tive muitos casos de colegas que nunca mandaram informação à SPA, os direitos eram cobrados mas, como nunca foram reclamados, foram parar a outro sítio qualquer. Isso é inadmissível. Por isso, como sempre tive a sensação de que não posso confiar totalmente, tenho de andar sempre em cima. Tento declarar as obras e os concertos a tempo e horas. E quando vou recebendo as listas dos meus rendimentos tento dar uma olhada para ter alguma noção se aquilo tem relação com a realidade. Mas admito que é complicado…

Quais as grandes virtudes ou defeitos destas duas entidades para a vida de um artista, neste caso músico, em Portugal?
São essenciais na medida em que o mercado espremeu muito, ficou muito diminuto com a quebra de vendas dos discos e com a muita concorrência do mercado ao vivo e estas instituições, num mundo digital e em que os conteúdos são partilhados rapidamente, são essenciais para garantirmos algum rendimento sobre aquilo que é a base do nosso trabalho, que é a criação da obra. Mas estas instituições vão ter de se modernizar muito mais. O streaming é uma certeza há uma série de anos e ainda me choca que os rendimentos provenientes das plataformas de streaming são, para a generalidade dos músicos, um problema em termos de sustentabilidade da indústria. Atenção: não quero ser injusto, está a ser feito muito trabalho, mas ainda não há grandes respostas, e é preciso sentar à mesa com essas plataformas e dizer-lhes que não vai ser possível continuar assim, porque os artistas apenas residualmente fazem dinheiro com a venda de discos. E as pessoas precisam de comer! Essa conversa tem de ser encabeçada por quem representa os artistas e os criadores, que são as sociedades de direitos de autor. Choca-me que, depois de todos estes anos, ainda não tenha havido um murro na mesa como em outras indústrias, como a dos argumentistas de séries, por exemplo.

Já alguma vez recorreste aos apoios financeiros para a criação artística disponibilizados por estas duas entidades?
Sim, até o fiz recentemente. São iniciativas de louvar. Para projectos independentes é muito difícil ter uma sustentabilidade financeira. O investimento é muito grande e, embora haja retorno, esse retorno acaba por ficar não muito longe do break even, para o mal ou para bem. E esses apoios poderem incidir nos custos de produção é uma mais-valia incrível para quem cria, e também para o país, porque Portugal ainda precisa de aumentar muito os seus índices de consumo de cultura. Por outro lado, sinto que é muito difícil obter esses apoios, principalmente por uma questão de linguagem, que muitas vezes é quase imperceptível. Para concorrer a estes apoios, embora tenha sido em nome do meu projecto, tive sempre alguém de fora a tratar disso e a fazer as propostas. Se fosse eu teria muita dificuldade. É uma questão de linguagem. O artista está concentrado na sua arte. Eu sei de música. Agora, ter o discurso formatado para preencher todos os requisitos para obter esses apoios é extremamente complicado. No nosso caso específico, da música, acho que é uma burocracia desnecessária, porque os projectos são extremamente fáceis de quantificar. Entendo que tenhamos de fazer prova do que vamos fazer e as linhas gerais do orçamento, mas há um certo complicómetro que à partida parece uma atitude de desconfiança, que é terrível e que mina a relação entre as instituições. É o estado de um país muito alicerçado na burocracia e isso é um ataque à democracia, porque afasta as pessoas desses apoios. Há uma grande sensação de inacessibilidade. A malta desiste antes de começar. Acho que não havia necessidade de o processo ser tão burocrático, porque as coisas são fáceis de quantificar. Entendo que exista fiscalização, porque o dinheiro que se distribui vem dos impostos das pessoas ou de fundações, mas então, porque não haver um balcão de atendimento para ajudar os artistas nesses casos? Ou haver projectos modelo, minutas de projectos, sei lá… Muitas vezes temos de pedir uns aos outros para tomar de exemplo. Claro que há quem possa dizer que se queremos esses apoios temos de estar informados e saber como fazer. Sim, senhor, concordo. Mas não podemos esquecer que estamos focados na nossa área de interesse e naquilo que é o nosso trabalho, naquilo em que somos bons. Esses apoios requerem um know how da máquina burocrática, e isso nem sempre é acessível. O processo devia ser muito mais simples.

É necessário reforçar e melhorar os mecanismos de remuneração [proveniente das plataformas de streaming], criando mais justiça

De seguida, apresentamos as respostas de Pedro Campos, Administrador da SPA, às questões que colocámos sobre toda esta temática. Em resumo, este responsável destaca a transparência existente em Portugal no que toca a todo o processo de gestão, cobrança e distribuição de direitos, mas não deixa de admitir as insuficiências e a falta de justiça patentes nos mecanismos de remuneração das plataformas de streaming.

Qual é o número de autores registados na SPA e quantos são da área da música?
A SPA tem aproximadamente 21 000 autores registados, sendo sensivelmente 65% os autores da área da música.

Qual a média de idades?
Não dispomos dessa informação detalhada.

Considera que Portugal tem uma política transparente no que toca à gestão, cobrança e distribuição de direitos de autor?
Portugal tem uma política transparente nessa área, apesar de algumas insuficiências sobretudo na área do digital, na qual se continua a aguardar legislação que traga mais justiça.

Como responde às dúvidas que alguns autores vão manifestando em relação a esse assunto?
A SPA segue escrupulosamente as normas da Lei da Gestão Colectiva, as aprovadas em AG, e as recomendações internacionais (uma vez que pertence à CISAC [Confederação Internacional de Sociedades de Autores e Compositores]), tendo ainda vários mecanismos de controlo como os ROCs, o Conselho Fiscal e a tutela realizada pela IGAC (Inspecção Geral das Actividades Culturais).

Resumidamente, como funciona o sistema de cobrança e distribuição de direitos?
Essencialmente, do mesmo modo que nas sociedades dos países europeus, onde a SPA se integra, e de acordo com a Lei da Gestão Colectiva. Existem vários tipos de cobrança, como avenças, contratos, pagamento de licenças, etc, e a distribuição é feita em função dos direitos que cada autor gera, existindo depois as distribuições colectivas que incidem também sobre os mesmos.

Há uma ideia generalizada que aponta os autores mais antigos como os grandes beneficiários da SPA e que esta pouco protege os novos autores. Como responde a esta crítica?
Não existe nenhum mecanismo de benefício dos autores em função da idade na SPA.

Considera que Portugal tem uma boa política de protecção do direito de autor?
Genericamente sim, exceptuando-se a área do digital, na qual prevalecem alguns atrasos.

Do ponto de vista dos direitos e não da promoção artística, considera as plataformas de streaming amigas dos artistas, ou nem por isso?
São “amigas” no sentido da promoção da obra dos autores, mas é necessário reforçar e melhorar os mecanismos de remuneração criando mais justiça.

Muitos autores queixam-se da dificuldade em obter apoios institucionais, principalmente devido à linguagem quase incompreensível dos regulamentos. É muito difícil obter um apoio da SPA para a criação artística?
Não é difícil obter apoio por parte da SPA, apenas se têm que cumprir os requisitos do regulamento. O processo é muito rápido relativamente à generalidade dos apoios existentes.

Que verba é distribuída anualmente para esse efeito?
A verba varia de acordo com o financiamento e receitas anuais do próprio fundo.

Quantos discos são apoiados anualmente pela SPA?
Varia de ano para ano, mas sensivelmente uma centena.

Qual a sua opinião sobre o Estatuto do Profissional da Cultura?
A SPA entende que, tal como está legislado, não se aplica ao autor, tendo apresentado já a sua própria proposta ao Governo.

FINANCIAMENTOS À CRIAÇÃO ARTÍSTICA: APOIO OU QUEBRA-CABEÇAS?

Nem todos os artistas têm capacidade financeira para investir nas suas criações. Para mitigar essas dificuldades existem os sistemas de apoio, um verdadeiro manancial de possibilidades, mas, em simultâneo, de obstáculos. Principalmente devido à linguagem nem sempre perceptível dos regulamentos, tal como sublinhou João Firmino uns parágrafos atrás. São por isso muitos os autores que desistem antes de sequer mergulharem neste universo.

Mas ainda assim não podíamos terminar este artigo sem deixar de disponibilizar algumas das soluções existentes no nosso país para quem deseja investir na criação artística. E também não é despiciendo referir que existem entidades, cooperativas ou associações que auxiliam os artistas neste particular, como é o caso da ProNobis, que esteve em destaque na segunda parte deste artigo, entidades essas que tentam descomplicar o que à partida surge como muito difícil de entender.

Ficam aqui alguns dos apoios existentes no nosso país:

Fundação GDA: Apoio à Edição Fonográfica de Intérprete. Candidaturas entre 4 e 29 de Abril de 2022, com um montante disponível a cifrar-se nos 350 mil euros. O apoio Circulação de Espectáculos encontra-se suspenso, aguardando-se novidades para breve.

SPA: Fundo Cultural. Não há informação sobre o concurso de 2022, sabendo-se apenas que este fundo distribuiu 839.774,43 euros em 2021.

Comissão Europeia: Europa Criativa 21-27. O orçamento total do Programa Europa Criativa (2021-2027) está estimado em 2,44 mil milhões de euros, sendo que 33% serão para todas as áreas da Cultura, com excepção dos sectores audiovisual e cinematográfico.

MusicAIRE: O Inova+ e o European Music Council (EMC) lançaram o novo projecto europeu MusicAIRE, que visa desenvolver um esquema de bolsas para apoiar o ecossistema musical a emergir da crise Covid-19 de uma forma verde, digital, justa e resiliente. Os primeiros convites à apresentação de projectos deverão ser publicados em breve, estando prevista a publicação de uma segunda ronda durante o Outono de 2022.

Direcção-Geral das Artes: Ainda não é conhecido o quadro de apoio para 2022, mas é aqui que se poderão conhecer as novidades e é aqui que se pode consultar o balcão de apoio da DGArtes.

Programa de Cooperação Ibero-Americana Ibermúsicas: Deverão abrir em breve as linhas de apoio do Programa de Cooperação Ibero-Americana Ibermúsicas com vista ao apoio a projectos que decorram em 2023.

Instituto Camões: Programas de apoio para realizar no estrangeiro destinados a projectos culturais de todas as áreas artísticas e residências artísticas – artes do espectáculo, música, artes visuais e literatura.

Institut Français Portugal: Apoia, no máximo, cinco novos projetos de cooperação franco-portuguesa. Formulário de candidatura activo até dia 14 de Fevereiro de 2022. Informações e candidaturas aqui.

Clube Português de Artes e Ideias: Concursos dirigidos a jovens criadores, nas áreas das artes visuais, banda desenhada e ilustração, dança, arquitectura e equipamento, design gráfico, fotografia, cinema, joalharia, design de objecto, literatura, moda, teatro e música. Informações aqui.

Centro Nacional de Cultura: Bolsas para escritores e para jovens criadores nas áreas da música, artes visuais, literatura e artes do espectáculo. Ainda sem informações sobre os concursos de 2022.

EEA Grants: Através da DGArtes, o mecanismo financeiro EEA Grants apoia projectos de programação artística que combinem actividades, incluindo a criação de novas produções/obras artísticas, a programação de produções/obras preexistentes e acções específicas de desenvolvimento de públicos. Ainda não há informação sobre o próximo quadro de apoio.

ARTEMREDE: Open call anual para programação de projectos de todas as áreas artísticas: espectáculos, oficinas e actividades de formação, exposições, sessões ou ciclos de cinema. Mais informações aqui.