ENTREVISTA | Troll’s Toy, Improviso e Ordem no Caos
Os Troll’s Toy têm de ser escutados para serem compreendidos. Muito mais do que palavras, é som. É ordem no meio do caos, improviso desenfreado, tensão explosiva e acalmia atmosférica. Uma bateria, um saxofone tenor e uma guitarra barítono. E um novo disco, “Eksterordinare”, que serve de mote à conversa com Jorge Loura.
Improviso e caos ordenado. É muito isso o particular universo do trio aveirense Troll’s Toy. Uma bateria intensa e dramática serve normalmente de linha condutora a um peculiar diálogo entre um saxofone tenor envolto em efeitos e uma guitarra que às vezes parece um baixo.
É música que não serve os propósitos da catalogação. E são os próprios a instalarem o caos quando nos pedem que imaginemos «como seria se Frank Zappa, Wayne Shorter, Richard Wagner e Egberto Gismonti se encontrassem num concerto dos Tool e formassem um trio». E foi precisamente dessa «impossibilidade matemática» que nasceu, há três anos, Troll’s Toy.
Os culpados pela «estrutura e caos, silêncio e ruído, guerra e paz» são Gabriel Neves (saxofone tenor), João Martins (bateria e percussão) e Jorge Loura (guitarra barítono), que nos deram entretanto a ouvir dois discos – “18:05“, em 2019, e “Eksterordinare”, já este ano.
A propósito do primeiro registo, na review da AS descrevia-se, em 2019, ser um elegante exercício de fusão musical, revestido de um corpo sonoro denso e envolvente. A propósito do segundo, editado em Julho, uma “joint venture” VICNIC/FLOP/SASG, o guitarrista Jorge Loura esteve à conversa com a AS e convidou-nos a entrar nesse sítio distinto que é a música dos Troll’s Toy.
Cada concerto é mesmo irrepetível, é único
Este disco foi todo de improviso como o primeiro?
Mesmo o primeiro não foi 100% de improviso. Fomos para estúdio com duas ou três ideias mais ou menos estruturadas. Na verdade, na altura do primeiro disco, não tínhamos sequer intenção de gravar um álbum, começou por um amigo que queria fazer umas experiências de gravação e ofereceu-nos tempo de estúdio. A ideia era ficarmos com uma pré-produção, até porque achávamos que não estávamos preparados para gravar um disco inteiro. Além das ideias que tínhamos, passámos horas e horas a improvisar ao longo de três dias. Quando fomos ouvir, tínhamos improvisações de uma hora seguida… aproveitámos 10 minutos daqui, outros 10 dali… Neste disco, como já éramos uma banda, com concertos e algum tempo juntos, fomos um pouco mais além.
Em que sentido?
Os nossos primeiros concertos foram sempre praticamente 90% improviso, mas houve um concerto que não correu assim tão bem e foi aí que pensámos em alterar o sistema. Além disso, foram surgindo ideias mais estruturadas ao longo do tempo, pelo que este segundo disco já foi diferente. Esforçámo-nos um pouco mais para termos coisas mais compostas, apesar de, quando falo em composições, falo de uma cabeça e pouco mais. Há temas que surgem a partir do fim da cabeça e nem sequer combinamos. Fazemos dois ou três takes e aproveitamos o que fica bem.
Mas depois sacam o que gravaram para tocar ao vivo?
Não. Até a cabeça fazemos questão de alterar em cada take, por vezes ir para uma cena um pouco mais metal, outras mais jazz, etc. Decidimos no momento. Acabamos por nunca sacar nada, porque se a ideia é improvisar, temos de continuar a fazê-lo. Se bem que, na apresentação do disco, com a Orquestra Filarmonia das Beiras, em Aveiro [Festival dos Canais], não pôde ser assim. No processo de escrita dos temas para a orquestra, fomos buscar gravações que tinham sido de improviso mas às quais tínhamos achado muita piada e decidimos passar para a partitura e fazer o arranjo para a orquestra. Era muito arriscado não ser escrito. Se tivéssemos tido mais tempo para ensaiar com eles, tínhamos improvisado todos, mas assim não dava, foram apenas três ensaios.
Então cada concerto vosso é mesmo irrepetível…
Julgo que nem nós conseguíamos repetir os temas como eles são. Cada concerto é mesmo irrepetível, único. Mas é um stresse gigante. Comparo entrarmos em palco com uma equipa a entrar em campo num jogo de futebol importante. Podes dar a táctica, mas há sempre um adversário do outro lado. O nosso adversário somos nós próprios. Mas esse stresse é óptimo, porque dessa forma estamos sempre em cima, sempre focados.
A banda começou quando comprei uma Fender Squier Jazzmaster Baritone
Nas secções harmónicas dos temas dos Troll’s Toy, a voz principal vai alternando entre o saxofone e a tua guitarra barítono. O protagonismo é repartido. E é uma espécie de fórmula…
Essa ideia surgiu logo no início. Para não falar da bateria como instrumento solista, a questão é que, como não íamos ter baixo, havia uma necessidade de não fazer disto uma banda de saxofone, além de que também queríamos dar protagonismo à guitarra. Uma das soluções passou pelo som do Gabriel [Neves], que antes dos Troll’s Toy nunca tinha usado efeitos no saxofone e, de repente, tinha pedaleiras que fazem inveja a muitos guitarristas. Agora usa uma Line6 Helix, mas tocou sempre nesta banda com pedais da Strymon e [Digitech] Whammy, este último ainda usa. Mas o primeiro pedal essencial foi o Octave. Ou seja, quando estou a solar ou a fazer melodias na guitarra ele mete o Octave e faz o papel de um baixo. A ideia é óbvia, no fundo, mas permite-nos trocar de papéis.
Usas muitos pedais?
[risos] Nem por isso. De há uns anos para cá, comprei uma pedaleira digital Fractal Audio AX8 que faz o que preciso. Ter oito efeitos em simultâneo já é muito para mim, uso dois ou três no máximo, e quando calha. Quando a comprei era para gravar. Como vivo num apartamento, não posso ter amplificadores a berrar e aquilo funciona muito bem para gravar. Quando experimentei tocar ao vivo, também achei fixe. Por muito que goste de tocar com amplificadores – quem é que não gosta de um bom amp a berrar? – há sempre problemas de volume e som a entrar em sítios que não devia. E como nós ao vivo tocámos sempre muito juntos, pior é. Então temos experimentado fazer a coisa o mais directa possível, à excepção da bateria, claro. E resulta.
Mas há outro tipo de som essencial na estética dos Troll’s Toy. A tua guitarra barítono.
Sim. A banda começou quando comprei uma Fender Squier Jazzmaster Baritone, um modelo que fizeram nitidamente com peças que sobraram. Pegaram num corte de uma Jazzmaster e puseram um braço de 30 polegadas e fizeram aquilo! Nunca tinha tido uma guitarra barítono e comprei essa. Vinha afinada em Lá. Queria ir o mais grave possível. Não havia nenhuma guitarra assim, mas o problema é que aquela guitarra não valia nada, a madeira e a electrónica são fracas. Entretanto, comecei a fazer uma com um construtor novo, o
Hugo Montenegro e a marca é Montenegro Instruments. Queria essa mesma característica, o braço de 30 polegadas, mas numa guitarra como deve ser. Que não há no mercado! Entretanto, sobre essa Squier, que até há pouco tempo era única no mercado, uma banda de metal, os Loathe, começaram a tocar com essa guitarra e agora toda a gente quer comprar uma. Cheguei a vê-la a 1200 euros, assim de repente. Então, eu, que comprei a minha por 400, vendi-a por 1200! E deu para investir na que estou a construir. Como a minha não está pronta, entretanto comprei uma SubZero, só para desenrascar, mas que ainda assim é muito melhor do que a Squier.
E quando é que tens a tua guitarra barítono personalizada na mão?
Acho que não deve demorar muito. Ele já fez um protótipo da guitarra dele, uma espécie de Telecaster, e a minha vem a seguir, julgo que até ao final do ano. Assim espero!
Gravamos sem metrónomo e em live take. Ou tocamos ou não
Onde é que gravaram o disco?
Na Fábrica das Ideias, na Gafanha da Nazaré, que é o cine-teatro local. Foi uma ajuda da Câmara Municipal de Ílhavo. Pedimos um espaço e eles emprestaram-nos. O Miguel Guerra levou todo o seu material e fez daquilo um estúdio. Íamos gravar mesmo no palco, mas depois percebemos que acusticamente era muito mais interessante gravar fora do palco e então montámos o equipamento no espaço que há entre a plateia e o palco e ficámos ali os três, com painéis acústicos a separar. Foram três dias. Foi fixe.
Como é o vosso processo no estúdio? Antes de gravar, ensaiam partes antes e deixam blocos na estrutura em aberto?
No estúdio, apenas ensaiamos as cabeças dos temas. Depois, gravamos sem metrónomo e em live take. Ou tocamos ou não [risos].
E não há truques?
A única coisa que fazemos, e já o tínhamos feito no primeiro álbum, é reamp [n.d.r.: reamp é um processo frequentemente utilizado em gravações multi-pista em que um sinal gravado é reencaminhado para fora do ambiente de edição e executado através de processamento externo usando unidades de efeitos e depois para um amplificador de guitarra, por exemplo]. Não queremos arriscar fazer um take perfeito e o som estar mau. Assim temos essa segurança. De resto, não fazemos truques, é o real deal, não por uma razão especial. Sabemos que podemos brincar na pós-produção e, se não o fazemos, é porque achamos que está a soar bem. Não temos problema nenhum em, se for o caso, desfazer tudo. Mas na gravação tentamos sempre sacar o melhor som possível de cada instrumento e depois que haja um sinal limpo para fazer reamp se for necessário.
Como é que captaram a guitarra e o saxofone?
A guitarra foi toda gravada com a Fractal Audio AX8. O saxofone foi captado através de microfone e do intraMic, uma cena muito fixe, que se monta na boquilha, tem um pequeno preamp e soa tão bem que o Gabriel está a pensar deixar de usar microfone ao vivo. A gravação fica com um sinal limpo e outro processado. Como somos um trio, o facto de o saxofone encher tanto o espectro sonoro com efeitos é uma grande ajuda para o som da banda. Por vezes, estou a fazer o papel do baixo e falta um instrumento harmónico, e ele quase faz isso, com o Wammy e reverbs.
Os Troll’s Toy não têm trabalhado apenas em trio. Queres falar sobre as coisas que andam a preparar?
Um dos primeiros projectos da editora à qual estou ligado, a VIC NIC, é uma compilação de artistas de Aveiro chamada “Rajada”, constituída por duetos improváveis. Gajos da folk a fazerem coisas com malta da electrónica, pessoal do jazz com um DJ ou um gajo do rock, e por aí fora. Ou sai no final deste ano ou na próxima Primavera. Calhou-nos o João Fino e a Teresa Queirós, uma artista multifacetada de Aveiro, cantora incrível, actriz, fotógrafa, faz tudo. É uma coisa meio bizarra, é Troll’s Toy a fazer uma espécie de canção e vamos ver o que sai dali. Mas, tendo em conta as demos, a coisa está a ir lá. Já gravámos a parte instrumental, só falta meter as vozes. O [João] Fino está a viver em Amesterdão, então temos andado a trocar ficheiros à distância. Além disso, o processo foi mesmo fora do comum. Não foi fazermos uma canção para eles meterem as vozes por cima. Foi cada um de nós os três fazer um pedaço de música improvisada no máximo de um minuto, podia ser um riff, uma textura, o que fosse. Não mostrámos uns aos outros e enviámos para os cantores para eles escolherem as partes que queriam cantar. E depois montar tudo. Foi um autêntico tetris. Mais uns cabelos brancos [risos].
“Eksterordinare”, apesar de poder parecer pretensioso, na verdade significa ponto fora da norma
Já pensaram alargar ainda mais o projecto para contemplar mais voz ou texto?
Sim, essa ideia até vem de trás. Já aconteceram algumas coisas por acidente, como essa espécie de disco ou EP, e um outro EP que fizemos entretanto com o João Salcedo, pianista de Os Azeitonas. Neste caso, estivemos umas horas a improvisar e saiu música suficiente para um disco. Em breve iremos fazer uma cena com poesia, ou seja, o projecto está sempre aberto. Meter voz nunca esteve fora de questão.
Mesmo sendo música instrumental, os vossos temas e álbuns têm títulos. Qual é subtexto das canções dos Troll’s Toy, se é que existe?
No início não havia ideia nenhuma. Não nos preocupámos com uma narrativa em relação aos nomes dos temas. Gravámos o primeiro disco e, até poucos dias antes enviarmos para a fábrica, os nomes eram os nomes de trabalho dos ensaios. Quando o designer Ricardo Miranda, que tem sido o meu wingman dos últimos anos, nos enviou o artwork, ficámos a olhar para aquilo e a pensar… Ele ouviu a música e criou uma história, fez um conceito a partir da música. Começou então a fazer-nos sentido haver uma narrativa para os temas e uma própria ordem para as músicas. Mesmo o nome do disco e o nome da banda, que é claramente um trocadilho óbvio com o escritor [Liev Tolstói]. Antes de ter sido lançado como livro, “Guerra E Paz”, de Tolstói, saía em volumes que se chamavam 1805. O nome do nosso primeiro disco é “18:05”. Neste segundo disco, não existe um conceito do início ao fim, os nomes fazem sentido com os temas, tivemos esse cuidado, mas não criámos uma narrativa, nem sentimos necessidade disso. Achámos que vale como está. O nome “Eksterordinare” [extraordinário em esperanto], apesar de poder parecer pretensioso, na verdade significa ponto fora da norma. Achámos que fazia sentido para descrever a nossa música. A verdade é que nem nós sabemos dizer o que é que tocamos… [risos].
Para terminar, nos últimos tempos tens estado envolvido com a nova editora VIC NIC. Queres contar-nos um pouco sobre a editora e o trabalho que tens desenvolvido?
A editora nasceu na antiga casa de Vasco Branco, avô do meu amigo Hugo Branco. O Vasco Branco é uma das grandes figuras da cidade. Era farmacêutico, cineasta, artista, tinha em casa um cinema que passava filmes clandestinos no tempo do Antigo Regime, fazia reuniões secretas, tudo o que era arte proibida era feita ali. Nunca foi preso porque ao mesmo tempo tinha dois amigos na PIDE e dava cana se o prendessem [risos]. O Vasco Branco era um benemérito da cidade, deixou um legado que é uma coisa séria. Morreu em 2014, faria 100 anos em 2020, e aquela casa ia ser vendida, mas o Hugo pediu à família que o deixassem tentar fazer alguma coisa. Em 2016, fez daquilo a VIC – Aveiro Arts House: uma casa-museu, residência artística, guesthouse e centro de artes. Há pessoal que vem da Austrália, Argentina, Sérvia… e fica lá meio ano. E coisas começaram a acontecer.
Entre elas a editora…
A editora nasceu porque desde que o projecto começou fizeram-se vários concertos, agora menos, por razões óbvias. Há, inclusivamente, um concerto lá gravado de Troll’s Toy que vai sair para o ano em vídeo. Mas quando o Hugo viu que tinha alguns concertos bem gravados e bem filmados decidiu fazer uma compilação em vinil. E daí nasce a ideia para a editora. Houve uma segunda edição que foi uma encomenda da CM Aveiro de arte sonora, paisagens sonoras, coisas relacionadas com sons de Aveiro e relacionadas com a pandemia. Entrei para ajudar como curador da compilação dos artistas de Aveiro, mas quando começámos a trabalhar nisto, fizemos faísca, começámos a ter ideias para tudo e mais alguma coisa e agora também sou editor [risos].
“Eksterordinare”, que podem ouvir na íntegra no player abaixo, foi gravado na Fábrica das Ideias, na Gafanha da Nazaré, por Miguel Guerra, que também misturou. A masterização é de Rui Ferreira. Se quiserem apanhar os Troll’s Toymao vivo, eles vão andar pelo Art Jazz, em Arcozelo, Gaia, no próximo dia 10 de Setembro.