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Os Três Megalitos dos Process Of Guilt

Os Três Megalitos dos Process Of Guilt

Nero
Inês Barrau

Aqui revemos o poderoso percurso dos Process Of Guilt, de “Erosion” a “Black Earth”, além da importância que teve o split com Rorcal, que permitiu a emancipação da banda nacional em alguns aspectos técnicos.

«Há muitos aspectos que me atraem na sonoridade em que Godflesh se insere ou, pelo menos, num tipo de sonoridade que apareceu com maior força na transição 80’s/90’s e os Godflesh representam, sem dúvida, um dos projectos que melhor transportou essa estética até aos nossos dias. O que me atrai nesta sonoridade e que, de um modo ou outro, também encontramos no som de Process of Guilt é, precisamente, a musicalidade abrasiva, o groove quase marcial sem nunca assumir uma cadência demasiada frenética e a temática lírica de pendor quase sempre apocalíptico. O Justin aborda esta sonoridade em muitos dos seus projectos sendo, claro, Godflesh o mais evidente, mas com o passar dos anos e depois de explorar esta vertente musical mais a fundo, considero que é, também, vital perceber a importância de bandas como Killing Joke ou Swans (na sua fase inicial) na formação desta estética industrial mais ligada ao metal».

Estas são palavras de Hugo Santos, compositor, guitarrista e vocalista dos Process Of Guilt, numa conversa a propósito da vinda da banda liderada por Justin Broadrick ao nosso país. A citação serve apenas para, nas palavras do próprio autor, contextualizar referências conceptuais e sónicas de uma banda que se tornou um dos expoentes máximos do underground nacional, fruto de um percurso de progressivo crescimento técnico, estético e sónico.

Aliás, Hugo Santos e Nuno David, o outro dos guitarristas da banda, diziam-nos em 2012 (na primeira conversa da banda com a AS) que as suas demotapes, bem como o primeiro álbum, “Renounce”, teriam sido mais como exercícios de experimentação enquanto banda. Talvez inconscientemente, a preocupação não era muito ter uma assertividade musical, mas descobrir. A sua redefinição musical começou a consolidar-se em “Erosion”, álbum de 2009, Oriundos de uma Évora onde ainda hoje subsistem poderosos artefactos de quando o mundo e a sua arte eram mais crus, em “Erosion”, os Process Of Guilt começavam a estabelecer uma parede impenetrável de riffs cuja imponência se diria a de um monólito que poderia estar erigido no círculo neolítico de Almendres.

E então chegou “FÆMIN”. Como sempre, até aqui, foi tudo captado estúdio Quinta Dimensão, do João Bacelar. Depois foi derimensionado. Misturado por Andrew Schneider, nos Translator Audio, em Nova Iorque, e masterizado por Collin Jordan, em Chicago, no The Boiler Room. Por mais que as bandas o relativizem há sempre um risco no trabalho de pós produção feito à distância – a pessoa encarregue de o fazer, sem a pressão da banda, pode limitar-se a cumprir uma formalidade e retirar a alma aos temas que esteja impressa nas captações. “FÆMIN” é um exemplo de quando as coisas correm bem por dois motivos: dentro do género o trabalho de Andrew Schneider está a tornar-se seminal e seria difícil esvaziar de alma um álbum como o terceiro longa-duração dos alentejanos.

“FÆMIN” é um monumento de peso colossal e com uma solidez de construção que não demonstra qualquer tipo de fissuras. Em comparação com os álbuns anteriores ganha sonoramente – quer em pressupostos técnicos quer estruturais – por um sentido mais cru, com menos processamento nas guitarras e um tamanho enorme no som de bateria. E, de facto, este é um álbum com composições e som muito mais fiéis ao que a banda mostrava ao vivo há um par de anos até chegar a ele. Se “Renounce” e “Erosion” foram construções circulares, “FÆMIN” é o centro megalítico da carreira dos Process Of Guilt – um punho no rosto de deuses esquecidos. Em retrospectiva, Hugo Santos afirma que foi o disco «onde nos encontrámos. Onde ficámos a par entre aquilo que queremos fazer, com aquilo que ouvimos, e entre uma data de ambiências que queremos fazer. Aí descobrimos ritmos mais dinâmicos e há uma orgânica de banda a funcionar de forma diferente. Em “Liar” tentámos levar isso um pouco ainda mais adiante e também transformar um grande tema em partes menores que, individualmente, conseguem ter um ritmo e cadência próprias».

Após vários anos na estrada com o álbum, era difícil imaginar um disco seguinte que fosse tão sólido, arrasador e consensual. Mas Hugo Santos, Nuno David, Gonçalo Correia e Custódio Rato conseguiram-no. Adjectivos como poderoso, massivo, monolítico, pesado, arrasador, etc., tornaram-se recorrentes para descrever a sonoridade dos Process Of Guilt. Certamente que podem continuar a ser aplicados a “Black Earth”, porque caracterizariam bem o disco. Mas já não são o núcleo sonoro da banda, naquele que é o seu quarto LP. Numa retrospectiva ao centro discográfico dos eborenses, “Erosion” e “Fæmin”, especialmente este, à sua maneira são mais épicos, enquanto “Black Earth”, com inesperada velocidade de bpms, é mais frenético e, consequentemente, mais agressivo.

É um álbum mais focado nas canções, que são mais directas. Aliás, “(No) Shelter” e “Feral Ground” cativam a atenção de imediato. Mas isso não torna o álbum imediato. Demora-se a assimilar as muitas nuances de tempos e dinâmicas que o percorrem e cuja súmula é feita (com intencionalidade ou não) simbolicamente no tema título. A partir daqui, é preciso juntar tenso e visceral à longa lista de adjectivos que descrevem uma das melhores bandas no underground nacional, paradoxalmente devido a um trabalho tremendamente arquitectado.

As canções, mais independentes umas das outras, sem estruturas melódicas e harmónicas ubíquas, sem evocação de repetições, são peças que juntas formam um puzzle. As partes formam o todo, como se os Process Of Guilt, se nos permitem a derivação, tivessem evoluído do megalítismo (presente nos Almendres) para a arquitectura granítica e marmórea dos romanos, do Templo de Diana. A mistura de Andrew Schneider despiu o som da banda, mas oferece-lhe uma intensidade exponencial, fazendo a intensidade do álbum envolver o ouvinte num percurso descendente de opressão até, tendo passado pela amplitude do hexastilo, se ver no pronau a contemplar a cela onde reside a estranha divindade órfica que vemos na capa.

Nessa ocasião, Hugo Santos e o baterista Gonçalo Correia visitaram a redacção da AS, para fazer uma retrospectiva a todo esse processo e ainda abordar questões conceptuais a respeito de “Black Earth”. Começando pelo título, que «pode servir como metáfora para muita coisa que está mal neste mundo. Foi nesse óptica que foi escolhido. O disco reflecte sobre muito do que está errado ao nível das decisões que cada um toma. Uma reflexão a respeito do nosso lugar “aqui” e do que fazemos com o outro e, em última análise, qual a nossa relação com a terra e com aquilo que nos rodeia», dizia o frontman.

LIAR & 5150

Entre “FÆMIN” e “Black Earth” houve o split com os Rorcal. «O “Liar” é uma continuação, mas é também a primeira vez em que fazemos algo que já não é o “FÆMIN” e que tentamos levar um pouco mais à frente», reflectia Santos em entrevista com a AS. Apesar de se tratar de um split, este registo tem uma enorme importância, como referia o guitarrista/vocalista nessa entrevista: «O “Liar” marca a primeira vez que abandonámos o sítio onde gravámos tudo desde o nosso início, o estúdio Quinta Dimensão, do João Bacelar. Acabámos por encontrar um novo parceiro, no estúdio do Paulo Basílio (TDA), onde fizemos captação de guitarras e voz, sendo que também encontrámos um novo local para a captação da bateria, uma vez que o André Tavares fez as captações no Atlantic Blue. Sabendo que iríamos ter a participação do JP, que iria acrescentar uma camada de noise ao nosso trabalho, acabámos por tirar partido da sua vontade em querer misturar estes temas. Como ele iria misturar os temas de Rorcal, achámos que isso acabaria por unificar a abordagem sónica dos dois lados do split. Também abordámos um novo estúdio para masterização, que foi feita pelo Raphaël Bovey no My Room Studio».

Portanto, além de servir de transição entre dois LPs, o split permitiu ainda a banda emancipar-se de velhos hábitos de estúdio. Todavia, falando em velhos hábitos, há algo de que os Process Of Guilt nunca abdicaram, os amplificadores 5150, que ambos os guitarristas usam, obtendo unidade e preservando personalidade.

«Mesmo com os mesmos modelos, um amplificador permite trabalhar respostas diferentes de som. Especialmente se não exagerares a puxar pela saturação/overdrive do amp, consegues apanhar nuances muito boas da própria guitarra e fazê-la aparecer mais. Diria que o meu som está numa região mais nos médios-agudos e a do Hugo nos médios-graves», explicava Nuno David, em entrevista prévia com a AS, rematada por Santos: «O 5150 tem bom espectro de equalização, que permite trabalhar essa distinção. É um amp que foi pensado para o shred à grande e não é isso que lhe acontece connosco… mas é um amp com bom som, tem um som encorpado e muito distinto. Por muito que goste de outros amplificadores já estou tão habituado a tocar com este, que sei precisamente onde pode chegar ao que queremos sonoramente, dentro daquela jarda e do tone que tem. Sem dúvida que há um certo virtuosismo na cabeça de quem pensou aquilo».

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