Um Sonho Chamado Reverence
Passam cinco anos da primeira e histórica edição do Reverence Valada Festival. Fazemos uma retrospectiva ao ambiente e melhores concertos que tiveram lugar no Parque das Merendas da pequena localidade ribatejana.
Foi nos dia 12 e 13 de Setembro de 2014 que decorreu a primeira edição de um festival singular no circuito português. Dois dias onde sonoridades mais psicadélicas tomaram conta do Parque das Merendas em Valada do Ribatejo, no Cartaxo. 56 bandas em três palcos diferentes. Hawkwind, Electric Wizard, Graveyard, The Black Angels, Mão Morta, Red Fang, Psychic TV e A Place To Bury Strangers foram os headliners de um cartaz massivo onde a música ultrapassou largamente a rotina dos profissionais das selfies, influencers e festivaleiros de “trazer por casa”, que correm atrás dos brindes de patrocinadores e prestam culto a marcas em vez de se prostarem diante do palco.
Foram dias marcantes para os amantes do rock, da contracultura ou, simplesmente, para aqueles que desejavam ver bandas sempre ausentes dos mega festivais de Verão, que mastigam os mesmos nomes, ano após ano. Junto de Alexandre Travessas, um dos rostos da produção do festival, a partir da segunda edição, fazemos uma retrospectiva a esses dias e aos dias que fizeram Reverence Valada Festival de 2014. Recordamos ainda as edições seguintes e colocamos a questão: o sonho do Reverence permanece vivo?
GRANDES IDEIAS, GRANDES MÚSICOS
A AS apoiou o festival desde a primeira hora, embora só se tenha tornado num dos parceiros oficiais na segunda edição. Na antecâmara do festival falámos com alguns dos nomes que nos visitariam. Desde logo com os Hawkwind. A banda liderada por Dave Brock tornou-se uma instituição capaz de oferecer ao rock discos tão brilhantes quanto instrumentistas. Basta lembrar que um dos baixistas que passou na banda foi Lemmy, antes de formar os Motörhead, o músico gravou com os britânicos, entre outros, três álbuns monstruosos, “Space Ritual” (1973), “Hall Of The Mountain Grill” (1974) e “Warrior On The Edge Of Time” (1975). Alguns dias antes do Reverence Valada e daquela que foi a primeira e única vez que Hawkwind estiveram em Portugal, Brock falou-nos de sci-fi, guitarras e rock.
Os Black Angels também se estrearam no nosso território no Reverence de 2014. Os texanos transportavam uma discografia de dez anos consigo e o registo, na altura, mais recente era o EP “Clear Lake Forest”. Foi Christian Bland, guitarrista e um dos principais compositores dos norte-americanos, que nos contou sobre a origem da banda e com quem trocámos ideias sobre o efervescente revivalismo do rock psicadélico. Os Killimanjaro lançaram “Hook”, o seu primeiro longa-duração, pela Lovers & Lollypops em 2014, e, depois de passarem pelo palco do Milhões de Festa e Vodafone Paredes de Coura, voltaram a Lisboa para mostrar como se faz o rock barcelense, num concerto produzido pela Loud! e pela Arte Sonora, que serviu de warm-up ao festival. Nessa ocasião, José Gomes (guitarrista e vocalista) falou-nos um pouco sobre a história musical de Barcelos, as diferenças entre as cenas rock do sul e do norte do país, e, como é óbvio, da sua própria banda.
Os Graveyard, depois duma primeira passagem no nosso país, no também reverencial festival Milhões de Festa, estavam de regresso com outro estatuto. A forma explosiva como o seu retro rock surgiu, principalmente a seguir ao segundo álbum, “Hisingen Blues”, tornava os suecos num dos grandes nomes do género. Em 2014, o baterista Axel Sjöberg ainda estava na banda e falou-nos do crescimento desta e do seu estilo de tocar. Confessou-se adepto da liberdade dinâmica que celebrizou John Bonham, por exemplo, em detrimento do espartano metrónomo. O músico confessou-se ainda um conhecedor e admirador de Lisboa, revelando uma aventura ébria ao visitar a estátua de um “Jesus Gigante”.
OS CONCERTOS
Não vamos recordar os concertos das 56 bandas. Nem sequer os vimos todos. Quem viu? Mas recordamos os mais marcantes ou, pelo menos, focamo-nos no palco principal. À cabeça de todos o de A Place To Bury Strangers, que foi um dos melhores concertos que vimos nesse ano. Uma tempestade eléctrica, carregada de volume e guitarras partidas. Conseguiram contrariar uma tendência que se impôs a muitas bandas. O set, relativamente curto, não teve quaisquer tréguas. A partir do momento que se ouviu “Deadbeat”, a fúria da banda jamais esteve contida e foi, inclusivamente, descarregada nos instrumentos. E o que doeu ver Ackermann destruir, literalmente, uma Jaguar. O modelo, já de si “sovado” por anos de abuso, com uma configuração tão intrigante como ressoante e agressiva [dois lipsticks, com o do braço envolto em fita], foi arremessado e partido em dois.
Os Psychic TV foram, provavelmente, a banda mais alienada do alinhamento. A par com os Hawkwind eram a banda mais antiga no festival, mas também um dos cabeças de cartaz menos conhecidos. Com percurso iniciado com o fim dos Throbbing Gristle, os Psychic TV têm tido um som mutante, fruto também das diferentes formações que o colectivo foi tendo. Entre o peso de A Place To Bury Strangers e o sideral de Hawkwind, abriram o concerto no palco Reverence, com a “Interstellar Overdrive” dos Pink Floyd. «Boa música. Mas não me digam que vai ser um concerto só de covers», pensamos nós, os eternos insatisfeitos. «Memories tell us one thing / everything must go». Enfim, “Greyhounds of the Future”, esse tema-tese sobre anti-matéria, tempo e desrealidade, vem depois encher-nos as medidas numa versão estendida. Genesis P-Orridge é das figuras mais transgressivas na música moderna e até o género faz questão de questionar. «É um homem ou uma mulher?», ouve-se perguntar. É Genesis Breyer P-Orridge, ou Genesis P-Orridge, para os amigos. Resumindo: é mentor/mago dum bando de esquizóides que lutam lírica e musicalmente pelo fim do mundo como os séculos construíram. Guitarras cobertas de efeitos, baixo repetitivo, teclas em camadas sonoras que forçam entrada no nosso espaço psíquico, e vozes. Vozes às vezes quase em formato spoken-word. Caldo conjugado com as projecções de vídeo, que são parte importante da actuação, tudo numa performance singular. P-Orridge e os Psychic TV tantos amores e ódios fizeram despertar ao longo dos anos. Também sobre o concerto no Reverence as opiniões não foram unânimes. Quanto a nós, aqui está uma memória que vale a pena conservar.
Entre os momentos previsíveis dos Hawkwind, houve riffs que sobressairam pelo seu classicismo e que acabaram por tornar ilustre a ocasião. O glamour de “Steppenwolf”, logo nos primeiros momentos da noite, mostrou o quão evocativo, ainda que simples, pode ser um riff de guitarra. A setlist viajou por uma carreira longa e acabou por contar a sua própria história de forma eloquente, a já citada “Steppenwolf”, de “Astounding Sounds, Amazing Music”, “Assault And Battery” e a floydesca “Golden Void”, do tremendo “Warrior On The Edge Of Time”, “You’d Better Believe It”, de “Hall Of The Mountain Grill”, ou “Sonic Attack”, o grande álbum já dos anos 80, chocaram com os temas menos inspirados da infindável lista discográfica dos reis do space rock.
Liderados por um vocalista fabuloso, os Graveyard terão dado o concerto mais easy-listening de todo o festival. Se uma banda abre um concerto com um tema chamado “Blues Soul” e outro chamado “Hisingen Blues”. É difícil não perceber os intentos e não identificar o mood do concerto desde o seu início. Mais que com o balanço do seu retro rock, os Graveyard apresentaram-se em Valada numa toada melancólica. A actuação tranquila da banda, músicos capazes de trabalhar numa dinâmica quase indolente, foi principalmente “electrificada” pela tremenda voz de Joakim Nilsson. É certo que há uma grande escola “roqueira” na Suécia, bastaria pensar em The Hellacopters, mas Nilsson levou isso mais longe e soava como um descendente directo de Steve Winwood, daquela extraordinária voz tenor de blue-eyed soul.
Eram as horas certas. Eram horas de matar quando os Mão Morta subiram ao palco Reverence para um concerto assassino. O círculo, que a própria banda afirma ter encerrado, entre o primeiro álbum e o último, foi aberto com “Até Cair” e “E Se Depois”. Os Mão Morta vinham de facas afiadas. Com um grande som, um som de guitarras agressivo, lento e pesado (a ensombrar mesmo os Electric Wizard). Adolfo pediria mesmo mais volume. “Irmão Da Solidão” transporta o niilismo das primeiras notas do novo álbum, e com elas desce o desagradável e fascinante pragmatismo da morte. A força com que os Mão Morta soam não é apenas bruta, é subtil e intrincada, principalmente nas guitarras – sem qualquer ponta de nacionalismo, Vasco Vaz foi o melhor guitarrista que passou no festival. Os solos precisos e ágeis revelam o guitarrista de Almada no auge das suas capacidades e da estranheza melódica que acrescenta à simbiose maquinal da banda.
Uma das melhores coisas no concerto de Electric Wizard foi alguns dos temas terem sido executados com um decréscimo considerável de beats per minute, em relação às versões de estúdio. A lentidão de “Supercoven”, logo a abrir o set foi excruciante. Também os temas de “Witchcult Today”, a faixa título ou “The Chosen Few”, receberam esse tratamento. Foi portanto mais lento, ou seja, MAIS PESADO. A incessante demanda de Jus Oborn, precisamente por mais peso, fez com que o guitarrista, quase sozinho, ressuscitasse o fuzz. Contudo, nos primeiros momentos do concerto, o stack Marshall (um Plexi, pois claro) de Oborn, essa sede insaciável de volume secava tudo ao seu redor. E a sujidade atingia níveis de demência na estridência dos solos do guitarrista. Foi o momento do PA suar, de ser puxado ao limite e de mostrar algo que se tornou evidente ao longo de todo o festival, o som do Palco Reverence foi uma chapada a produções com muito mais meios e atenção dos media. Num concerto em crescendo, a profanação, amplificada num volume extremo, ascendeu ao seu zénite nos clássicos monstruosos “Funeralopolis” ou “Dopethrone”, peças assinadas no álbum de 2000, o “Master Of Reality” do segundo milénio.
Podem ainda relembrar as sínteses dos palcos secundários no primeiro e no segundo dia do festival.
EPÍLOGO
O festival teve outras três edições, estranhamente crescendo progressivamente em termos de produção, mantendo, mais ou menos a mesma bitola de cartaz, mas definhando o público. Este factor foi fundamental para ver o festival desaparecer. Visto de fora, os custos de produção foram bastante elevados logo na primeira edição e apesar de um número interessante de pessoas, esperavam-se certamente muitas mais.
Alexandre Travessas, actualmente na direcção artística do festival O Sol da Caparica, trabalhou na produção do Reverence Valada a partir da segunda edição e, em conversa com a AS, recorda: «Corria o ano de 2014 quando todo o underground e o meio indie/alternativo português foram surpreendidos por um novo evento que suscitou desde logo as maiores expectativas – o Reverence Valada. Essencialmente era o cartaz, a qualidade/quantidade daquele alinhamento. Depois, foi a experiência no festival propriamente, os concertos e o ambiente que se viveram em Valada naqueles dois dias foi, de facto, único, e percebeu-se que tinha acontecido algo muito especial ali. Isso fez logo com que o evento conquistasse o seu lugar e se tornasse numa referência. Apesar de ter estado presente nessa primeira edição enquanto público, também por lá passaram bandas que representava na altura e percebi que algo não estava a correr assim tão bem».
O nosso interlocutor elabora esta ideia de que havia algo que não estava nos eixos. «Mais tarde, percebeu-se que o Reverence, apesar do sucesso mediático, não tinha reunido as condições necessárias para que uma segunda edição fosse possível, mas os promotores estavam à procura de novos parceiros que os ajudassem a manter a marca viva. O primeiro contacto, com o objectivo de manter o Reverence vivo, deu-se no Paradise Garage, em Lisboa, num concerto dos Tara Perdida; o acordo foi fechado na Mexicana, uns dias depois. Curiosamente uma das primeiras peripécias desta aventura, foi perceber que, os agora sócios ingleses, antes sequer de comunicarem a quem de direito a edição 2015, já tinham ofertas aceites para duas bandas, os Alcest, que acabariam por ficar no cartaz, e os Anvil que, por votação da equipas, saíram do programa. A vontade de fazer era, de facto, muita», diz Travessas.
Assim, o segundo ano foi realizado nos mesmos moldes e com uma aposta forte nos headliners, desde logo os Sleep, e pontuado por alguns episódios pitorescos nos bastidores. «A segunda edição, apesar de ter superado os números da primeira e de ter reunido as condições para que uma nova investida em 2016 fosse uma realidade, esteve sempre em constante comparação com a primeira (um bocado como o síndrome do segundo álbum). Desse ano recordo a actuação dos Sleep, em estreia por cá, e um Matt Pike que, ao sair do soundcheck, conseguiu ficar preso no ring onde estava instalado o backstage desse palco e, basicamente, se perdeu atrás do seu próprio camarim. Os Amon Duul II, por exemplo, queriam fumar “cenas” e decidiram pedir lume aos elementos da GNR de serviço; toda uma aventura. Destaca-se também a surpresa provada no público pelas actuações dos Calibro 35 e Stoned Jesus, mas também momentos menos positivos… Como o Judah, dos Blues Explosion, a levar a chave do camarim consigo e a deixá-lo trancado, depois de destratar um assistente. É curioso recordar que os Truckfighters, que estavam confirmadíssimos, cancelaram um ou dois dias antes do anuncio, o que obrigou a alterar todos os planos de comunicação, e que bandas como Ghost, Dandy Warhols, Uncle Acid & The Deadbeats, Sleaford Mods e Kadavar estiveram para fazer parte desse cartaz».
Só podemos imaginar o quão retumbante poderia ter sido esta edição, curiosamente, para a AS, a melhor de todas elas, se os nomes que estavam nos planos da produção tivessem, efectivamente, sido confirmado. De resto, para Travessas, 2015 teve o mesmo espírito do seu antecessor e permitiu perceber o que se podia melhorar em 2016. Mesmo tendo que lidar com as dores de crescimento, o festival parecia solidificar-se. No terceiro ano, os Killing Joke foram a grande aposta e criaram enorme expectativa, mas essa revelou-se uma aposta trágica. O cancelamento da banda nas vésperas do festival, que as lendas britânicas do pós-punk nunca explicaram, foi um rude golpe para o Reverence.
«No caminho que levou à terceira edição já se sentiu que havia um movimento e carinho em volta de Reverence Valada e este foi, muito provavelmente, o cartaz mais completo de todos – e também o princípio do fim. Começou tudo com o cancelamento dos Killing Joke uma semana antes do início do festival e acabou com a certeza de que, só muito dificilmente, o evento se realizaria no mesmo espaço em 2017. Em 2016, os Thee Oh Sees colocaram toda a produção em stress porque, a poucas horas de subirem ao palco, ninguém sabia onde andavam. Porquê? Quando apareceram, pensavam que a hora em Portugal era a mesma de Espanha. Os Dead Meadow, que chegaram cinco horas atrasados ao recinto, deram um concertão e, quando foi para irem embora, um deles não sabia dos outros dois. Um deles enganou-se no hotel e, nunca ninguém percebeu bem como, conseguiu instalar-se e dormir num quarto; o outro, depois de varrer tudo o que era buracos na região (até na Kikas procurámos), foi encontrado a dormir numa vala entre a sala de produção e o backstage do palco principal. Nesse ano, os A Place to Bury Strangers deram o que deve ter sido “o concerto” de todas as edições, mas as estreias por cá dos The Damned, Fat White Family e The Brian Jonestown Massacre também foram muito especiais. Nesse ano aconteceu o que foi talvez a única situação onde activámos a segurança e solicitámos a presença urgente das autoridades… Um homem com cerca 1,90, envergando uma gabardine (e deviam estar uns 30 e muitos graus) e carregando uma barra de ferro numa mão, parou em frente à entrada principal, encarou a segurança, recusou-se a ser revistado e nem sequer tinha bilhete. No final, tudo se resolveu e o senhor acabou mesmo por entrar. De realçar que os The Fall, Clutch, All Them Witches, My Dying Bride, Yob e Ministry estiveram para participar nesta edição, sendo também importante recordar que os Mão Morta e os Bizarra Locomotiva promoveram as Reverence Sessions, em Lisboa, com duas datas esgotadas cada e com concertos históricos».
Na 4ta edição, o festival deslocou-se para Santarém, com um cartaz que possuía ainda o psicadelismo como trave mestra, mas que ganhava um carácter mais pesado, com os Amenra, os Oathbreaker ou os nacionais Sinistro e Moonspell, por exemplo. Foi uma experiência frustrante, confessa Travessas: «Em 2017, após muita discussão em relação ao caminho a seguir, a equipa que restou brinca que não foi muito diferente do famoso Fyre Festival, por todas as histórias e peripécias que envolveram esta edição. Tendo em cima da mesa a pertinência de uma mudança de local, já se sabia que o espaço pensado originalmente para o primeiro Reverence tinha sido a zona da Ribeira de Santarém e que, de certa forma, mudar para ali, seria o passo certo. No entanto, desde um “sequestro” à página de Facebook, a planos de implementação do recinto que nunca chegaram, tiveram de se ultrapassar um sem número de incidentes, que fizeram com que o Reverence morresse nas margens do Tejo, mas um pouco mais a sul de Valada. Para a memória fica o grande concerto dos Bo Ninguen, o negócio com garrafas de vinho para conseguir tirar os The Underground Youth do palco e a frustração de ter ali tantas bandas boas e tão pouco público».
Foi a última vida do Reverence. Ou não? É possível perceber que, para a equipa que resistiu até à última edição, o sonho permanece vivo. Nas palavras de Alexandre Travessas: «Entretanto, passaram cinco anos desde a famosa estreia e, ainda hoje, o festival é referido pelas bandas que trouxe pela primeira vez a Portugal e pela nostalgia do ambiente muito próprio que se vivia naquele Parque de Merendas em Valada. Já rotulado de malogrado, há sempre uma constante esperança de que, um dia, ainda seja possível ressuscitar o Reverence».