Dream Theater, Um Enorme Coração Sem Alma
2020-02-02, Campo PequenoUm concerto de sensações mistas (muito por culpa das condições sonoras). Os Dream Theater tornaram a promover um emocionante reencontro com Victoria, mas Mangini não conseguiu fazer esquecer Portnoy na execução do soberbo álbum “Metropolis, Part 2: Scenes From a Memory”.
Às 20H00, em ponto, apagam-se as luzes e surge nos ecrãs o vídeo sci-fi que introduz a digressão “The Distance Over Time”. A peça instrumental que se ouve é “Atlas”, uma composição de Nick Phoenix & Thomas J. Bergersen (procurem nos canais de streaming, o seu carácter épico vale bem a pena). O vídeo mostra-nos a sequência de capas da discografia dos Dream Theater: “When Dream And Day Unite”, “Images & Words”, “Awake”, “Falling Into Infinity”…
Todavia, o arranque com “Untethered Angel” irá focar a primeira parte do concerto no recente álbum “Distance Over Time”, com dois momentos de revisita aos anos de Portnoy, desde logo “A Nightmare To Remember”. Infelizmente, o som está numa embrulhada cacofónica e um absoluto lodo, particularmente na bateria. O espectáculo é garantido por John Petrucci, cujos dedos pegam fogo logo neste tema, e Jordan Rudess larga a workstation Korg Kronos para vir à frente do palco solar num Roland AX-Edge Keytar.
Os músicos executam cada momento de forma meticulosa, Mangini de forma quase científica, mas a confusão da mistura e o excesso de reverberação presente na sala faz com que, por não se perceberem alguns detalhes, se sintam as passagens em síncope entre estruturas de forma algo brusca, sem fluidez musical. Na noite anterior, Gondomar ouviu “Paralyzed”. Lisboa, ao invés, é presenteada com “Fall Into The Light”. Entre os riffs barítono da primeira e a estética mais heavy metal desta última, venha o Diabo e escolha. Qualquer opção seria bem-vinda.
“Barstool Warrior” é um tema querido da banda, percebe-se pelo crescente compromisso dos músicos com o tema. John Petrucci, no passado, partilhou algumas ideias sobre esta canção: «É um conto fictício sobre duas personagens, sem qualquer relação, mas ligadas no seu lamento sobre estarem presos em situações sem resolução. O primeiro é um tipo local, um alcoólico que nunca conseguiu escapar da monotonia da sua sonolenta vila marítima. A segunda é uma mulher aprisionada numa relação abusiva, esforçando-se por sobreviver dia após dia, enquanto se questiona o que a faz permanecer. Ambos imaginam uma nova vida e encontram coragem para abraçar um futuro melhor ao encarnarem a pessoa que sonham ser». Petrucci é o dono deste Teatro de Sonhos, é certo, mas os choques de volume que surgem para realçar os momentos dos seus solos rebentam a dinâmica da canção, a respiração instrumental.
Noutras zonas do recinto, conversando com malta que esteve presente, os desequilíbrios sentidos são outros, mas a opinião comum é que a mistura esteve confusa. Felizmente, as coisas melhoraram progressivamente (pun intended). No próximo tema, o som está com um equilíbrio mais aceitável, já que volume nunca faltou. E em boa hora isso aconteceu, pois “In The Presence Of Enemies (Part I)” soou monstruosa. A banda, cada vez mais quente, esteve esplêndida neste épico de velocidade, melodias gémeas e diferentes andamentos. À distância, Petrucci parece ter usado pela primeira vez no alinhamento uma das novas versões da Majesty, a Purple Nebula.
Na despedida da primeira parte, “Pale Blue Dot”, com os seus poderosos riff industriais (quase Fear Factory), manteve o nível que entretanto se atingira (de execução musical e qualidade de som). Eram as 21H00 e os vinte minutos de pausa seriam de ouro para ajustes de som visando a especial segunda parte do concerto dos Dream Theater.
METROPOLIS, PART 2: SCENES FROM A MEMORY
Ainda a meio da primeira parte, James LaBrie inquiriu o público presente no Campo Pequeno: Quantos estiveram presentes na digressão original de “Scenes From A memory”? Surpreendentemente, muito pouca gente levantou o braço.
Não se terá a pretensão de comparar a interpretação do Campo Pequeno com a que teve lugar na Aula Magna a 20 de Abril de 2000. Afinal, por mais marcante que tenha sido esse extraordinário concerto, 20 anos pesam bastante na memória. Mas foi inevitável apreciar esta interpretação integral comparativamente com o concerto que a banda gravaria, em 2000, em Nova Iorque, onde fechou essa digressão original, e com o próprio álbum – uma obra-prima conceptual ouvida vezes sem conta.
Naturalmente, LaBrie (que foi sempre o elo mais fraco dos Dream Theater) é quem denota mais a passagem do tempo. A idade não perdoa e um concerto de mais de duas horas muito menos. O vocalista esforçou-se imenso, mas sofreu em igual medida para procurar chegar a a registos que lhe estão cada vez mais vedados. Também não valerá a pena dissecar em demasia, uma vez mais, as diferenças entre os dois Mikes, Mangini e Portnoy. Mas não há volta a dar, replicando um álbum tão marcante, em que Portnoy se exibiu no apogeu das suas capacidades, Mangini fica demasiado exposto. A sua forma clínica e com uma precisão cirúrgica a bater, tornam o som demasiado frio, desprovido de groove. Citando livremente um amigo baterista, o Mangini tecnicamente é melhor do que o Portnoy, mas executa como um músico contratado que tem que cumprir a sua função e não deixa o seu cunho nem alma nas batidas. As batidas são monótonas, sem vida, sem dinâmica. Soa sempre com o mesmo volume e intensidade, soa artificial e demasiado mecânico.
John Petrucci soa mais solto que nesses concertos na Aula Magna ou no DVD. Está com um som mais aberto, preenchido, recortado e bonito. Na verdade, a grande constante entre agora e vinte anos atrás é John Myung. Intratável ao longo de todo o concerto, a debitar nota atrás de nota no seu Bongo de seis cordas modificado. Não conseguimos discernir se usou o modelo fretless em “Through Her Eyes”, mas o Chapman Stick não surgiu em “Home”.
Precisamente em “Through Her Eyes”, os Dream Theater homenagearam algumas suas suas influências que já partiram, casos de Randy Rhoads, Neil Peart e Chris Squire, David Bowie, Chris Cornell e Zappa.
Entrávamos na ponta final do concerto e, com ou sem Chapman Stick, “Home” soou estupenda, com enorme vigor nas melodias gémeas entre sintetizadores, guitarra e baixo, com velocidade e intensidade nas progressões de escala e um robusto corpo harmónico. O crescendo de intensidade da actuação passou a ser constante e teve o seu zénite no frenético instrumental “Dance Of Eternity”, que permanece uma das mais vibrantes composições de sempre do rock progressivo.
Depois, em “One Last Time”, o concerto ganhou um novo instrumento, timidamente ensaiado em “Home”, os coros de quem esteve presente no Campo Pequeno. Vozes que soaram, obviamente, emocionadas na lindíssima balada “The Spirit Carries On”, com a sala iluminada pelas luzes de milhares de telemóveis (a pedido de LaBrie). A forma como a história cresce e o enredo se desenvolve até aqui, torna este tema catártico para todos os envolvidos, músicos e público.
E depois o intenso final. “Finally Free” foi tocado com redução nos bpm’s, em relação ao álbum, talvez para tornar ainda mais poderoso aquele último riff da canção. O solo de bateria que aí surge, a encerrar o tema foi… estranho. Da nossa parte, continuamos a sentir saudades de Portnoy, mas foi bom regressar a vinte anos atrás e relembrar Victoria.
A AS tem acompanhado praticamente todos os concertos de Dream Theater em Portugal, no entanto, a um nível pessoal, já passava uma boa década desde a última vez que vira aquela que, entre “Images & Words” e, precisamente, “Scenes From A Memory”, era uma das minhas bandas favoritas. Por isso, tinha sabido bem ouvir o mega clássico “Pull Me Under”. Depois da descarga emocional que foi a segunda parte do concerto, “At Wit’s End”, uma boa malha, não conseguiu soar minimamente apoteótica.
SETLIST
- Untethered Angel
A Nightmare to Remember
Fall Into the Light
Barstool Warrior
In the Presence of Enemies, Part I
Pale Blue Dot - Metropolis, Part 2: Scenes From a Memory
(Álbum reproduzido integralmente) - At Wit’s End