George Harrison, O Colossal e Catártico “All Things Must Pass”
Em 27 de Novembro de 1970, George Harrison editou “All Things Must Pass”. O triplo LP incluía várias canções que nas sessões de estúdio dos Beatles nunca passaram de leftovers e que, aqui compiladas, tornaram o álbum no mais vendido de sempre e num dos mais aclamados trabalhos de um Beatle a solo.
A indústria musical, já se sabe, é capaz de tirania draconiana. É assim que, muitas vezes, impõe as fórmulas que sabe funcionarem. E é capaz de as forçar mesmo nos maiores nomes que a habitam. E não há nomes muito maiores que os Beatles, nem fórmula tão aclamada como a dupla Lennon/McCartney. Era com essas composições que os Fab Four vendiam, e vendem, milhões atrás de milhões de discos. Mas, na ressaca dessa tirania “formulaica”, acabam por surgir as grandes surpresas da música. Afinal, “Tomorrow Never Knows”… E surgem nas bandas fora do radar mediático, que nos atingem como um trovão, ou na emancipação a que são chamados os génios, até aí, aprisionados em espartilhos estéticos. E há poucos tão geniais como George Harrison.
A sua influência crescente nos Beatles despoletou uma exploração sónica na banda, que se foi acentuando de “Rubber Soul” até ao último álbum, “Let It Be”. E depois, quando os rapazes de Liverpool se separaram e não havia mais composição em dupla, o grande álbum pós Beatles não foi de Lennon, nem de McCartney, mas de George Harrison. “All Things Must Pass” celebra 50 anos de vida, mantendo-se como um dos mais vigorosos testemunhos das surpresas que permanecem ocultas do foco mediático e daquilo que um músico é capaz quando se solta da imposição de editoras e produtores, expressando-se com sinceridade pura.
«Foi um álbum muito importante para mim e, na altura, um veículo para todas as canções que escrevera durante o último período com os Beatles. Comecei a gravar poucos meses após a decisão de cada um de nós seguir o seu próprio caminho e estava ansioso por gravar um primeiro álbum de “canções”» – Notas de Harrison.
Se “Wonderwall” e “Electronic Sound” foram álbuns instrumentais, nos quais Harrison procurara apenas escoar o seu grande talento musical, agora que as suas canções não iam, de todo, ser subjugadas aos condutores da Beatlemania e Harrison podia assumir um papel de produção, de decidir livremente, sem estar espartilhado pela imposição (vinda de cima) da fórmula Lennon-McCartney.
O título do álbum, “All Things Must Pass”, é bastante elucidativo. Desta vez os Beatles tinham mesmo acabado e tudo seria diferente. Era altura de colocar para trás aquela que foi, provavelmente, a maior banda de sempre, a maior aventura de sempre, na história da música popular.
UM FIM ANUNCIADO
Foi na segunda metade da década de 60 que os Fab Four começaram a perceber totalmente o seu poder e o impacto das suas acções. A banda editou “Rubber Soul” e começou a negar controlo aos barões do show bizz e deixou de aceitar ser manietada e exibida como um troféu de propaganda política. E o presunçoso mundo ocidental começou a ver a banda que idolatrava como uma ameaça. Em 1966, a banda recusou o convite de Imelda Marcos, primeira-dama das Filipinas (onde estavam em digressão) e esposa do ditador Ferdinando Marcos, para uma recepção no Palácio Presidencial.
Nos Estados Unidos, fanáticos religiosos e conservadores (incluindo o Ku Klux Klan) estavam em polvorosa com a famosa entrevista em que Lennon dizia que o cristianismo desapareceria: «Vai minguar e desaparecer. Nem preciso de o explicar, estou certo e o tempo o dirá. Actualmente, nós somos mais populares que Jesus Cristo; não sei qual desaparecerá primeiro, o rock ‘n’ roll ou o cristianismo. Jesus era a valer, mas os seus discípulios eram burros e vulgares. É a distorção que fizeram que me desagrada».
O Vaticano lançou um protesto e os discos da banda foram proibidos de passar em rádios holandesas e espanholas, por exemplo. Não valia de nada Lennon explicar que se referia à forma como a própria sociedade olhava para os Beatles e o seu sucesso, fanáticos luteranos e católicos tinham sido colocados de frente com um espelho e não gostaram do que viram, Lennon acabou por pedir desculpa.
George Harrison conheceu Ravi Shankar, que o ensinou a tocar sitar, em Londres e a banda mergulhou na cultura indiana, onde se refugiou ainda no mesmo ano. A meio desta transmutação, a banda decidiu que “Revolver” (o título indicava agressividade e “revolvimento”, mudança), onde começa a emergir a influência de Harrison de forma mais vincada, seria o último álbum a ser promovido em digressão. A complexidade das canções aumentou, tal como a experimentação em estúdio, e surgiu o acréscimo de arranjos, indo de conjuntos clássicos de cordas ao psicadelismo.
Um som que atingiu maturidade total em “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, editado em ’67. Nesse vórtice metamórfico, Brian Epstein morreu. As relações entre o empresário e a banda estavam tremidas, mas os rapazes de Liverpool, para todos os efeitos, estavam agora “órfãos” e viraram-se para Maharishi Mahesh Yogi, viajando mesmo para meditar junto do guru.
Redescobrindo-se criativamente e musicalmente, em ’68 a banda iniciou as sessões do álbum homónimo, mas Ringo Starr e Paul McCartney começaram a questionar a influência do guru sobre os seus colegas e abandonaram o retiro. Lennon abandonaria também a Índia, quando confrontado com o comportamento sexualmente predatório de Maharishi, e trouxe consigo Harrison. As gravações do White Album continuaram, mas a experiência no ashram havia cavado distâncias entre os Fab Four.
Starr abandonou mesmo a banda por duas semanas, com McCartney a sentar-se na bateria em algumas sessões. Lennon perdeu o interesse em escrever com McCartney e todos os temas são de um ou de outro, com o primeiro a referir-se a algumas composições do companheiro como «música de merda para velhotas». Ao mesmo tempo, nenhum dos outros três apreciava o platonismo de Lennon por Yoko Ono. Se as sessões deste álbum decorreram num ambiente tenso, as de “Abbey Road”, de onde resultou também “Let It Be”, foram de “cortar à faca” e Harrison abandonou as sessões durante uma semana, ameaçando mesmo abandonar a banda.
A banda que havia sido maior que Jesus terminara e entraria numa tempestade de acusações internas e disputas legais.
Os Beatles não se entendiam quanto a quem apontar como seu gestor económico, Lennon, Starr e Harrison queriam Allan Klein, McCartney queria o cunhado, John Eastman; Lennon iniciou a Plastic Ono Band e em 20 de Setembro de ’69 anunciou a saída da banda, ainda antes da edição de “Abbey Road”; ninguém queria assumir a produção das Get Back Sessions, que viriam a ser “Let It Be”, tal era o ambiente entre os quatro músicos.
Então, Harrison gravou “I Me Mine”, em Janeiro de 1970, e Phil Spector assumir a edição e produção das sessões de “Let It Be”. Talvez por convicção, talvez por Spector ter produzido o single solo de Lennon, “Instant Karma!”, McCartney desprezou o trabalho final do produtor e exigiu alterações à mistura final, particularmente em “The Long And Winding Road”. As exigências foram ignoradas e a 10 de Abril de ’70, foi a sua vez de anunciar a saída. A banda que havia sido maior que Jesus terminara e entraria numa tempestade de acusações internas e disputas legais.
ANTI EGO
A verdade é que, exceptuando Ringo, os restantes Beatles andavam já embrenhados na sua própria música. Lennon ou McCartney eram “garantidos”, mas Harrison também estava preparado. Nas notas do autor, Harrison conta-nos: «Tive a sorte de estar no momento certo para conseguir o remanescente dos The Delaney & Bonnie. Jim Gordon, Carl Radle e Bobby Whitlock, baterista, baixista e teclista, respectivamente, tinham vindo a Inglaterra para passar um tempo com o Eric Clapton (e estavam rapidamente a tornar-se em Derek And The Dominoes). Gravámos, inclusivé, duas das canções dos Dominoes, “Roll It Over” e “Tell The Truth, durante as sessões de “All Things Must Pass” e que eles regravaram mais tarde. Foi óptimo ter o seu apoio em estúdio, foi uma grande ajuda».
Enquanto o ego de Lennon o fazia menosprezar, de certa forma, as expectativas dos fãs e exagerar no sentido avant-garde das canções, e o ego de McCartney o fazia sentir-se demasiado seguro de si próprio, criando canções que tomam o público como garantido, o ego mais moderado de Harrison não hesitou em acolher a influência de várias personalidades. Além dos Dominoes, surgem neste álbum nomes como Phil Collins (no pico da sua forma como músico prog), Bobby Keys, Peter Frampton e, principalmente… Eric Clapton! No entanto, na altura, as editoras não permitiam a associação entre Harrison e o Slow Hand, e por isso Clapton não surgiu nos créditos de “All Things Must Pass” durante mais de 30 anos.
Bob Dylan escreveu com Harrison o tema que abre o álbum, “I’d Have You Anytime”, e ainda “If No For You”. Ringo não estava a tocar com ninguém e juntou-se às sessões, gravando cerca de metade dos temas, tal como Billy Preston fez nos pianos, ele que Harrison já tinha levado para as gravações de “Abbey Road” e “Let It Be”.
Harrison ficara convencido com Phil Spector e a sua Wall Of Sound e chamou-o para a produção e assumir o trabalho em estúdio. Trabalho esse que foi exaustivo, como o próprio Harrison lembra nas notas sobre o álbum: «Algumas sessões foram alvo de longa preparação sonora e os arranjos chegaram a contar com vários percussionistas, quatro ou cinco guitarras acústicas, dois bateristas, dois pianos e até dois baixos numa das canções. As canções foram tocadas repetidamente até os arranjos serem incorporados pelo engenheiro, de acordo com o som que o Phil Spector queria».
Harrison iniciou as gravações, nos Abbey Road, em 26 de Maio de 1970. Os engenheiros, Ken Scott e Phil McDonald, que auxiliaram o músico e Phil Spector, também tinham um passado com os Beatles. A abordagem escolhida foi a fórmula Wall Of Sound, com a gravação das bases instrumentais feitas em take directo e gravadas em 8 pistas. O ex-Beatle esperava passar um máximo de dois meses em estúdio, mas esteve “preso” entre Abbey Road, Trident Studios e o Apple Studio até Outubro.
Diz-se que Phil Spector precisava de se “encharcar” em brande, antes de conseguir começar a trabalhar, e Harrison viu-se obrigado a assumir muita da produção. À dependência de Spector juntou-se a de Clapton. O guitarrista apaixonou-se pela mulher de Harrison e, consumido pela culpa, afundou-se no consumo de heroína. Estas situações atrasavam as sessões e aumentavam os custos com o álbum, então a EMI começou a pressionar Harrison, que ainda teve que lidar com a morte da sua mãe.
Com Spector em convalescença em Los Angeles, coube a Harrison supervisionar os overdubs. Em Agosto, Spector respondeu por carta e impeliu à mudança para os estúdios Trident e o seu sistema de 16 pistas. Spector regressou para controlar a conversão das faixas já gravadas em 8 pistas para o novo formato.
«Ainda gosto de todas as canções no álbum e acredito que elas continuarão a resistir ao teste do tempo e ao estilo em que foram gravadas. (…) Passados estas anos, gostaria de libertar algumas canções da grande produção, que parecia apropriada na altura mas um pouco excessiva no reverb da wall of sound», anos mais tarde, Harrison lamentaria o sobrecarregamento de reverb na mistura final do álbum, mas isto permitiu somar ainda mais instrumentos e overdubs aos temas.
Foi assim que, em Setembro, foram gravados os arranjos orquestrais de John Barnham que transformaram o som de temas como “Isn’t It A Pity”, My Sweet Lord”, “Beware Of Darkness” ou “All Things Must Pass”. Também foi nesta altura que, até pela ausência de Clapton, Harrison gravou algo que se tornou numa linguagem sua por excelência, os elementos slide guitar. A expressão do guitarrista, numa fusão de blues e do universo da sitar e música indiana, tornou-se única! Vejamos as guitarras que usou…
GUITARRAS
Nesta altura, iam longe os primeiros tempos dos Beatles e os dias das Rickenbacker e da sua guitarra mais famosa, a Gretsch Duo Jet. Harrison, quiçá influenciado por Clapton, era cada vez mais fã dos modelos clássicos da Gibson e da Fender. Aliás, em 1968, Clapton ofereceu uma Les Paul Standard de ’57 ao seu amigo. A guitarra, originalmente Goldtop, foi transformada num Cherry Red. Foi a guitarra que gravou “While My Guitar Gently Weeps” e que Clapton usou ainda em muitas sessões de “All Things Must Pass”. A guitarra foi alvo de versão Custom Shop da Gibson [na imagem].
Harrison estava mais fixo na Fender. E depois da descoberta e intensa utilização da peculiar Rosewood Telecaster, de ’68, nos dois últimos trabalhos dos Beatles, neste álbum o músico celebrizou duas Strats: a “Bangladesh Strat” e a Rocky Strat. A primeira recebeu a sua alcunha por ter estado sob foco permanente no “Concert For Bangladesh”, em 1971. É um modelo dos anos 50 da Fender, com escala em maple e o acabamento completamente “lixado”, com a madeira do corpo completamente nua.
E a Rocky Stratocaster era a guitarra que Harrison usava para fazer slide. Originalmente era um modelo Sonic Blue e foi a primeira Fender que Harrison comprou, em 1963 ou ’64, quando ele e Lennon decidiram passar a usar Strats. A pintura terá sido feita na altura de “Sgt. Pepper’s”. A escala era rosewood, o braço é datado de Dezembro de 1961 e o serial number é 83840.
Este ano, a Rocky Strat de George Harrison foi alvo de réplica da Fender Custom Shop. A reconstituição da guitarra é um trabalho de Paul Waller, através de um minucioso processo de engenharia invertid. O corpo, braço (com um raríssimo perfil “C” assimétrico), os PUs e circuito são uma fidelíssima emulação de como Harrison usava o modelo que comprou durante as sessões de “Help” – nessa ocasião, o roadie Mal Evans foi confiado com a missão de encontrar uma Stratocaster para Harrison e outra para Lennon. Em “Help” ouviu-se pela primeira vez uma Stratocaster gravada na discografia dos Fab Four.
Sobre as Strats, Harrison diria: «Por minha vontade, a Strat teria sido a minha primeira guitarra. Tinha visto a do Buddy Holly na capa do álbum “Chirping Crickets” e procurei uma. Mas em Liverpool, naquele tempo, a única coisa que se encontrava parecida a uma Strat era a Futurama. Era muito difícil de tocar, as cordas ficam muito distantes da escala… De qualquer modo parecia realmente meio futurista».
BEHIND THAT LOCKED DOOR
O Quiet Beatle fez um disco aclamado por meio mundo e adorado por outro meio, no fundo, um disco aclamado por quem não gostava de Beatles e adorado por quem gostava. Muito além do conservadorismo de McCartney ou do vanguardismo de Lennon, “All Things Must Pass” é um álbum explosivo de rock ‘n’ roll e elástico esteticamente. Um disco onde toda a capacidade criativa e técnica de Harrison surgiu livre e, talvez por ter estado tanto tempo na sombra, surpreendente.